“Gostava de ter um poeta. Podemos ter um?”
Foi num passeio pela Feira do Livro que encontrei este pequeno livro. Pouco volumoso e com uma capa estranhamente sugestiva, ali se encontrava Vamos comprar um poeta de Afonso Cruz. Depois de O Pintor Debaixo Do Lava-Louças e Flores, fiquei quase obcecada pelo autor. A leitura ligeira e as histórias bizarras mas quotidianas marcam a escrita do autor que deixam qualquer um completamente envolvido. Vamos comprar um poeta foi devorado numa tarde e não desiludiu.
O Pintor Debaixo do Lava-Louças é a história Josef Sors, um pintor judeu que fugiu à guerra e às tropas nazis, escondendo-se debaixo de um lava-louça, em casa dos avós do autor, em Portugal. A história que Afonso Cruz nos conta é um cruzamento entre o real e o imaginário. De facto, os avós do autor acolheram um refugiado que mantiveram escondido em sua casa, na Figueira da Foz; no entanto, a vida da personagem é imaginada.
Flores é um relato triste e melancólico de alguém que viu a sua vida cair no buraco quase sem fundo que é a rotina. Sem ter muito por onde se apegar, a personagem deprimida amarra-se ao Senhor Ulme, um vizinho cuja memória se varreu, e assume como desafio recolher a máxima informação possível sobre a sua vida. Nesta aventura, a personagem vai viver sabores e dissabores na sua vida conjugal, amorosa e na relação com a sua filha.
A história de Vamos Comprar Um Poeta passa-se num mundo futuro e estranhamente desenvolvido. Esta era é marcada pelo pragmatismo e numerização. As pessoas perdem os seus nomes e adquirem códigos. A beleza de um nome deixa de depender da sonoridade das sílabas que o compõem e passa a estar relacionada com os dígitos do número (“BB9,2- que nome pomposo, com vírgula e uma dízima ridícula”). Tudo é contabilizado, numerado e calculado segundo o ser valor financeiro ou lucro. A legitimação de qualquer ação, qualquer compra, qualquer produto depende da existência ou de um futuro lucro. Se não é lucrativo então é desnecessário.
Quem nos conta a história é uma figura feminina e bastante jovem. Tudo começa quando numa noite ao jantar, a personagem se levanta e exclama “Gostava de ter um poeta. Podemos comprar um?”. A mãe, que se vai revelando submissa, o irmão adolescente simplesmente ignora mais um dos devaneios da irmã e é o pai que avança dizendo “De que tamanho?”. A naturalidade com a qual se arranja um poeta é retratada de forma quase cômica. A ida à loja, a escolha e a vasta oferta que é apresentada à família. “Os de óculos são mais caros”, diz o vendedor. A narradora cria uma relação especial com o poeta, que lhe vai mostrar uma outra forma de ver o mundo, vendo além e mais longe do que qualquer outra pessoa.
O livro funciona como uma crítica social aos governantes pela forma como vêm e tratam da cultura. Na obra, Afonso Cruz parece dar uma piscadela de olho àqueles que por este assunto são responsáveis. Nas páginas finais da obra, o autor faz um pequeno estudo através do levantamento de dados concretos relativamente à cultura, nomeadamente a contribuição para o PIB, o emprego que gera etc. Os números que Cruz apresenta são de certa forma impressionantes e o autor aponta o dedo aos governantes que tem conhecimento destes valores mas os ignoram, como quando viram a cara a um mendigo.
Numa obra deliciosa e extremamente envolvente, com uma linguagem fluente e acessível a que o autor já nos habituou, Afonso Cruz convida-nos entrar neste mundo alternativo onde a cultura, o saber e arte são postos em plano de fundo; onde o dinheiro e o capital são prioridades e o lucro o derradeiro objetivo.
Assim como o poeta da história mudou o modo de ver da personagem principal, com certeza que a obra mudará a percepção de todos aqueles por quem o livro passar pelas mãos.