Um negociante de gêneros literários – a começar pelo romance
Ao brincar com diversos gêneros literários para falar do cenário da literatura do último século, Matéi Visniec, em O negociante de inícios de romance, faz uma crítica bem-humorada aos revezes enfrentados por autores iniciantes e experientes e a ânsia pelo sucesso.
O que se sabe sobre a literatura romena por aqui? Alguns mais desavisados podem logo lembrar-se de um personagem de Bram Stoker, cuja morada ficava pelos lados da Transilvânia, região central da Romênia – Drácula, é claro. Mas o criador do famoso vampiro é britânico e, a despeito da fama que deu ao país, não tinha nada a ver com a distante região do Leste Europeu. Outros, mais interessados em dramaturgia, têm como referência Eugène Ionesco, escritor e dramaturgo do chamado teatro do absurdo. Matéi Visniec é agora um dos autores mais encenados no Brasil, após a tradução para o português de grande parte das peças produzidas nas últimas três décadas.
Visniec viveu sob o jugo da ditadura de Nicolae Ceausescu e, a partir dessa visão opressiva, criou histórias que fazem uma crítica social sob uma estética surrealista, mas no sentido de tornar ainda mais absurdas as situações vividas pela população do país e denunciá-las a outros países. O autor nunca escondeu as referências a Franz Kafka, Thomas Mann, Samuel Beckett, dentre outros, e a dimensão das obras desses escritores fica evidente em O negociante de inícios de romance (publicado pela editora É Realizações, também responsável pela difusão das peças do autor no Brasil).
Não há dúvidas de que o autor faz uma homenagem clara aos escritores europeus do início do século 20, entretanto, Visniec brinca com múltiplas referências à cultura pop contemporânea, demonstrando ao mesmo tempo erudição e versatilidade. Afinal, nada deve escapar a um autor iniciante (a ironia do livro), tudo pode ser material para um romance instigante e famoso: os filmes de ação estrelados por Bruce Willis, Harrison Ford ou Sylvester Stallone, misturados ao cinema de Luis Buñuel, Akira Kurosawa ou Federico Fellini. E, se tudo é possível de ser utilizado e fazer sucesso, por que alguns autores e livros alcançam a fama e outros não? E pior: por que a Romênia nunca teve um prêmio Nobel? O que é a literatura passível de ser premiada? (Encontramos ecos dessa mesma discussão no Brasil).
O livro parte da história de Guy Courtois, personagem que se diz responsável por vender as primeiras frases de livros de Franz Kafka, H. G. Wells, Herman Melville, Thomas Mann:
“A primeira frase de um romance tem de conter a energia do grito inconsciente que provoca uma avalanche… Tem de ser faísca libertadora de uma reação em cadeia… Por essa razão, a primeira frase nunca é inocente. Ela contém em si, germinativa, toda a história, a trama na sua integralidade.”
Mas Visniec não se contenta com um personagem forte e instiga o leitor com um romance caleidoscópico, que nos lembra um pouco a proposta de Ítalo Calvino em Se um viajante numa noite de inverno, de fazer do leitor o protagonista da história. O fato é que, em muitos momentos, a leitura de O negociante de inícios de romance nos faz acreditar que somos nós que estamos construindo o enredo e, ao final, dá até uma certa vontade de reler o livro em ordem aleatória e tentar enxergar a narrativa de outra forma. Esse exercício seria possível em razão da própria estrutura do livro. Cada capítulo tem um formato textual – conto, poema, relato – oferecendo ao leitor uma visão fragmentada do enredo e é, declaradamente, uma sucessão de charadas, que pode muito bem agradar uns ou provocar a desistência prematura dessa experiência de leitura, que tem um caráter ora realista ora onírico. É também biográfico: Visniec é fundador do Clube Literário da Segunda-feira na Romênia e aproveita um capítulo para falar sobre a cultura e a literatura como elemento básico de resistência a qualquer tipo de totalitarismo, mas o faz com graça, leveza e bom humor.
O negociante de inícios de romance – Matéi Visniec – É Realizações (386 páginas)
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