Vestido de noiva: a grande ousadia de Nelson Rodrigues

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Em Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, estão presentes conflitos universais, psicologicamente densos e de todo reconhecíveis em muitos de nós, o que torna a peça bastante catártica
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Ser ousado não é fácil, tanto na vida como na arte. A ousadia pressupõe romper com padrões estabelecidos e comodamente aceitos por um grupo de pessoas, o que envolve questões sociais e até mesmo econômicas. Porém, alguns dos nossos mais importantes escritores só chegaram a esse patamar justamente porque extrapolaram tais fronteiras. Estamos falando, dentre outros, de Mário de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa… e Nelson Rodrigues. Cada um a seu modo, na sua individualidade e estilo. No caso deste último, o ponto de inflexão na carreira de dramaturgo veio com a corajosa escrita e posterior produção da peça Vestido de Noiva.
Para entendermos o tamanho da revolução, é importante voltar na história. Até o início da década de 1940, o teatro brasileiro era bastante simplista em seus textos e atuações. As peças resumiam-se a comédias encenadas por atores que não decoravam textos (em muitas delas era usado um “ponto”, ou seja, uma pessoa que soprava as falas por um buraco no palco, isso quando os diálogos não eram improvisados), em cenários de pouco apuro, reciclados de produção em produção. Tudo muito rudimentar. Nessa mesma época, Nelson Rodrigues fazia carreira como jornalista de O Globo e dava seus primeiros passos no teatro, à procura de uns trocos a mais. Começou com A mulher sem pecado, que pouca atenção lhe rendeu. Até que, imbuído daquela faísca que salta dos ousados, produziu, em impressionantes seis dias, o seu Vestido de Noiva, uma peça desafiadora e diferente de tudo que já havia sido feito em teatro no Brasil.
Rodou o Rio de Janeiro e falou com muitos conhecidos em busca de alguém que pudesse montá-la. Não encontrou quem se dispusesse. Era impossível, diziam. O único que acabou aceitando a proposta, Abadie Faria Rosa, se arrependeu logo depois e não disse qualquer outra palavra a respeito. Foi quando o texto de Nelson chegou às mãos de Thomaz Santa Rosa, cenografista de renome e integrante do grupo de teatro amador “Os comediantes”, que mal pôde acreditar no que lia. Passou as páginas ao diretor do grupo, o polonês Ziembinski, um judeu fugido da Europa. Ambos haviam assistido à montagem de A mulher sem pecado e concluído que o bom texto de Nelson fora soterrado por uma montagem desastrosa (feita, por sinal, pelo próprio Abadie Faria Rosa). Assim, acreditando ser capaz de produzir algo melhor, a dupla decidiu se arriscar na empreitada de dar vida à fantasia do autor.

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Lina Grey, Stella Perry e Luiza Barreto Leite na peça “Vestido de Noiva”, em 1943

Mas por que a peça causou tanto pânico entre os profissionais de teatro da época? Vejamos: trata-se de uma encenação com três planos diferentes de acontecimentos – a realidade, o delírio e a memória. A protagonista, Alaíde, encontra-se à beira da morte, logo após um acidente de carro. A primeira cena é a da batida. A partir dela, um devaneio comatoso toma conta da mente da protagonista e conjura uma conversa da moça com madame Clessi, cafetina assassinada em 1905 e cujo diário Alaíde encontra no sótão de casa. São as interações surreais entre as duas que vão revelando ao público suas histórias prévias. Alaíde, mimada e invejosa, lida com as implicações de ter roubado o noivo da irmã. Madame Clessi, apaixonada por um menino de 17 anos, acaba sendo vítima desse amor condenável. Duas mulheres que jamais se conhecem, a não ser no delírio de Alaíde. Como podemos perceber, portanto, essa é uma história complexa mesmo quando vista no papel, em que todas as mudanças de plano ficam mais claras pelas rubricas do texto. Imagine-se então no palco, com alterações rápidas de ambiente, com Alaíde ora vestida de noiva, ora na maca do hospital. No total, foram 140 mudanças de cena, 132 efeitos de luz, além de mesas e cadeiras movimentadas por fios invisíveis para alterar o cenário com rapidez. Ou seja, um enorme desafio técnico para a produção, além de um incrível desafio de compreensão para o público.
A reação dos presentes, aliás, é descrita como fria, com poucos aplausos no fechamento do primeiro e segundo atos. Com o final da peça, reina o silêncio, até que, aos poucos, o som das palmas vai crescendo e termina em triunfal ovação. Nelson, em seu camarote, nem chega a ser notado pelo público – que clama pelo autor, mas não consegue desgrudar os olhos do palco. Esse momento o marcaria para sempre, já que ele diria, algum tempo depois, ter se sentido ali “um marginal da própria glória”.
Não há registros da encenação a não ser algumas poucas fotos da estreia. Os atores, a maioria amadores, não tiveram carreiras de grande sucesso. Sabe-se, porém, que deram o melhor de si, em ensaios de 8 horas por dia, no último mês, ocorridos durante as madrugadas, único período em que o Teatro Municipal do Rio de Janeiro estava livre. Ziembinski quase os levou à loucura, mas conseguiu o que parecia inviável: encenar Vestido de Noiva.
O esforço da equipe e do autor, que aproveitou-se de todos os seus conhecidos do meio e do próprio jornal em que trabalhava para fazer um marketing positivo a respeito da peça, foi compensado. Alguns, maldosos, poderiam inclusive argumentar que o frisson criado de maneira mais ou menos artificial foi o responsável pelo sucesso da encenação. Bobagem. À parte o que se sabe sobre a notável montagem realizada, cabe assinalar que o texto é de uma força impressionante. Os diálogos são ágeis, entrecortados, mantendo os mistérios com eficiência até que sejam revelados ao espectador. Isso sem falar na construção das personagens, que leva o delicioso sabor rodrigueano, exibindo sem pudor as diversas faces do desejo pelo proibido: a identificação entre Alaíde e Clessi, que assumem personalidades opostas aos papeis sociais que representam; as relações desleais estabelecidas com Pedro, o cafajeste adorado pelas duas irmãs; além do irresistível apelo da morte quando um se mostra obstáculo às vontades egoístas do outro. São conflitos universais, psicologicamente densos e de todo reconhecíveis em muitos de nós, o que torna o texto de Nelson catártico em grande medida, como têm sido as boas peças desde a Grécia Antiga.
O dramaturgo brasileiro acertou ao apostar na sua ousadia e inquietude. Modificou o panorama do teatro da época e abriu caminho para uma nova geração de escritores que vieram em seu encalço. Sua determinação deveria servir de ânimo para os que estão na dúvida a respeito de suas produções. A provocação incomoda e pode resultar em fracasso – mas é dela que é feita a arte.
 
Bibliografia:
CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
RODRIGUES, Nelson. Vestido de noiva, In: Teatro completo de Nelson Rodrigues – peças psicológicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

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