Em “Saboroso cadáver”, a argentina Agustina Bazterrica mostra a barbárie por trás do aparentemente civilizado homo sapiens.
Indo ao encontro com outras obras
Yuval Noah Harari, em seu aclamadíssimo “Sapiens: uma breve história da humanidade”, nos ensina que a nossa é a espécie mais bem preparada e destruidora de todas. Somos os maiores predadores do planeta, ganhando inclusive dos vírus mais implacáveis. Não tem para ninguém quando o assunto é extinguir, caçar, matar, eliminar, por gosto ou necessidade, outras espécies e até mesmo a nossa.
Também a literatura já nos apresentou obras que nos fazem questionar a nossa suposta humanidade e o próprio termo, “humanidade”.
William Golding, em “O senhor das moscas”, conta a história de um avião que, durante a Segunda Guerra Mundial, cai em uma ilha. Os únicos sobreviventes são um grupo de meninos que, liderados por Ralph, procuram se organizar enquanto aguardam um suposto resgate. Só que aos poucos esses garotos aparentemente inocentes transformam a ilha numa visceral disputa pelo poder, e sua selvageria rasga a fina superfície da civilidade. Isso: a civilização realmente fica para trás e o que resta é a barbárie, apenas ela. O livro é uma bruta reflexão sobre o limite entre o poder e a violência desmedida.
Outra obra, desta vez de um autor de língua portuguesa, nos põe frente a frente com o que temos de mais bárbaro e predatório: “Ensaio sobre a cegueira”, do mestre José Saramago. Nesta obra, algumas dezenas de cegos são internados em um sanatório desativado e vivem o mais predatoriamente que nossas mentes de Sapiens podem imaginar. Como qualquer obra de Saramago, vale a leitura, e muito.
Eu poderia citar outras obras aqui, numa lista que certamente só se alongaria e cansaria o leitor, mas esses três exemplos já bastam para iniciar o que pretendo discutir: o livro “Saboroso cadáver”, da autora argentina Agustina Bazterrica.
A obra
Lançado na Argentina em 2017, “Saboroso cadáver”, da autora argentina Agustina Bazterrica, ganhou o Prêmio Novela de Clarín no mesmo ano. Ano passado, 2022, a Darkside nos presenteou com uma tradução impecável e igualmente edição, com direito a capa dura e a excelentes e assustadoras ilustrações.
A premissa da obra já instiga: em um mundo em que todos os animais contraíram um vírus que os torna letais ao ser humano, nós, Sapiens, ficamos impedidos de comer proteína animal. Porcos, vacas, cabras, cavalos, galinhas: qualquer animal, se consumido, matava o comensal. A solução foi criar fazendas para criação do único ser vivo no Planeta Terra cuja carne não fazia mal ao homem: os humanos. Sim, passamos a construir fazendas onde criávamos machos e fêmeas geneticamente modificados para serem mansos e terem carne tenra e nutritiva. Nós os alimentávamos com rações balanceadas, de forma a que nada daquela “peça” fosse perdido: cabeça, braços, dedinhos, tripas, glúteos etc.
É nesse mundo distópico que nos é apresentado o protagonista, Marquito, separado de Cecília e empregado em um abatedouro (de humanos, óbvio). Um dia, surge em sua casa uma fêmea desgarrada, que tinha “o olhar humano do animal domesticado”. Marquito a acolhe, limpa, mantém e, aos poucos, algo como afeto, tesão ou carinho, ou tudo junto, passa a ligá-los – o que potencialmente gerará encrencas para Marquito.
Subjetividade animal
Eu acredito que a literatura funcione nas frestas das nossas dúvidas, no atrito gerado entre nós, representados por nossa subjetividade, e o mundo objetivo do trabalho, das estatísticas, dos mercados globais e das compras no shopping. Assim, livros como esse, “Saboroso cadáver”, nos arrancam de uma zona de conforto e nos impõem dúvidas quanto à parte de barbárie que nos cabe nesse latifúndio. Até que ponto a civilização é um conceito que me constrói? Em que ponto eu prescindo dela e penso unicamente no meu próprio umbigo, na minha fome, na minha vontade e nos meus desejos?
Somos mais animais do que supomos, Yuval Noah Harari nos ensina. Cada vez mais pérolas da literatura ratificam e até aprofundam essa afirmação, pois mesmo não tendo pelos espalhados pelo corpo, não me pendurando em árvores, tendo aparelho fonador e polegar opositor, minha porção animal, que até então se resguardara (Ave, Gil!), poderá assomar a qualquer momento.
Ensinamentos da literatura.
Créditos HL
Esse texto é de João Peçanha. Ele teve revisão de Evandro Konkel e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.