Viver é muito perigoso, e ainda bem

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Para Riobaldo, de Grande sertão: veredas, viver é muito perigoso, porque ainda não se sabe e porque aprender a viver é que é o viver mesmo

Imagem de “Grande Sertão: Veredas” (1985), uma adaptação televisiva produzida pela Rede Globo, com Bruna Lombardi interpretando Diadorim e Tony Ramos, Riobaldo.

No romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, o narrador-personagem Riobaldo se conta a seu modo, “a meio, por em dobro não contar”, indo e voltando na história com “tudo turbilindo”. Uma frase que sempre aparece como um refrão é: “Viver é muito perigoso”. Às vezes varia para uma pergunta, às vezes se acrescenta “o nem não é muito perigoso” e se soma a outras expressões. Mas o que significa tanto perigo?

Nós, pessoas de ciência e de técnica, há muito tempo buscamos métodos e cálculos que nos livrem das ameaças externas (e até mesmo internas). Precaver-se dos ímpetos da natureza passa pelo afastamento da morte: afastar-se então da fragilidade, do estranhamento, do medo, do horror… Obcecados por probabilidades, queremos garantir e ter certeza de que uma pedra não despencará em cima de nós e de que aquela outra pessoa que amamos de fato nos ama.

O sentido de viver, no Grande Sertão, é saber-se no sertão grande, no vão imprevisível: “Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?”. E em outro momento, o narrador-personagem remonta a questão: “Por que era que eu estava procedendo à toa assim? Senhor, sei? A gente vive o repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros…”. Estar em vida é estar em curso, como um rio. O rio, pois, é fluxo, com correntes, baixas, subidas, curvas, e quem o atravessa não depende só de si, numa autonomia de planos e projetos, mas está no movimento de si junto com o movimento do rio.

A imagem de milênios foi inscrita pelo pensador originário Heráclito, ao dizer que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. Outras águas já passaram, outro momento já se fez. Estar sobre estas águas é se colocar dentro de tal força, a ponto de não apenas o rio ser fonte de modificação, mas aquele que o percorre: “No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos”. O crítico e filósofo Benedito Nunes, ao comentar a obra-prima de Guimarães Rosa, sentencia: “o homem, por ser viajante, é também a viagem”. Em outras palavras, o homem, ao atravessar o rio, é também o rio, ao viver é também a vida que se segue.

Seria possível  dominar o curso do rio e de si, a ponto de livrar-se do perigo? Riobaldo se colocou o dilema. Ele, muitas vezes na vida, só enxergava a entrada e a saída das coisas, isto é, a meta e o modo de realizá-las, mas viu que não era possível: “Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada”. Achava então que tudo o que interrompesse suas metas era uma ameaça, e daí é que o perigo parece tão assustador. Mas “[…] o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

A grande mudança se mostra no vazio e no absurdo: “Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente, E marchei duas léguas. O mundo estava vazio […] Dormi, deitado num pelego. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo – Deus estável.”

Quando acorda, Riobaldo descobre que o vazio pode ser belo. Se antes o perigo era se perder no meio dos próprios objetivos, agora estar perdido seria a condição do viver, em um sertão “sem fechos”. Essa ausência de exatidão não é caos, falta de sentido e angústia, é abertura para criação, para se deixar levar também pelo fluxo e se dar para a vida enquanto também a recebe de volta. O “Deus estável” parece a descoberta de Riobaldo, em que o mundo deixa de ser um mero vazio para ser uma grande possibilidade, compreendida através de histórias.

Diz Riobaldo, meio filósofo, meio místico, como também o era o próprio Guimarães: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Neste trecho, Riobaldo comemora o perigo. Ainda bem que não é uma exatidão que nos estanca, que nos engessa e que nos entedia do mundo, é sempre uma via de se fazer algo novo e de chegar aquilo que não se espera. Do imprevisível pode vir uma pedra sobre nós, é verdade, mas desviar é o manejo do jagunço, do cavalheiro; do imprevisível pode vir também o encontro, o outro, o milagre.

Como então chamar este perigo, que é um balanço, uma vereda de oscilações, como um perigo no sentido em que empregamos? Um perigo do qual se poderia livrar, se, por hipótese, melhor fosse conduzido? Sendo o modo da vida, o perigo se revela como o viver, e viver e perigo são um e o mesmo. Do grande sertão só pode haver veredas, e ao contrário das matas fechadas, onde a trilha se faz, na planície seca tudo pode ser caminho, desde que alguém o faça. A união de viver e de arriscar-se é a fonte da travessia, porque viver e atravessar tampouco se distinguem, e o destino é itinerante. “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.

O desenvolvimento da frase tem variações nas sutilezas: da afirmação para que o viver é muito perigoso, seguida depois de reticências ao fim, para ser posta em pergunta e logo acompanhada de “nem não é” ou “não é?”, sem que esta ordem seja obedecida. A maneira inexata das aparições do refrão, com o titubeio, a ida à frente, a volta incerta, em uma narrativa que já assim se coloca, mostra um dos sentidos pungentes em seu conteúdo, no qual o contar ressoa o modo desse viver, ou seja, como um “descuido prosseguido” Assim, em uma das variações finais, Riobaldo inscreve: “Viver é muito perigoso. E não é não”.

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