Viveu pra contar causos

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Em 1926, por aí, o meu pai era um jovem telegrafista. Viajava pela Colômbia levando os postos, os fios, e os aparelhos. García, era o nome dele. Quando chegou em Aracataca, cidadezinha isolada, conheceu a minha mãe, da família Márquez, tradicional, com certa grana. Começaram a namorar. Mas, além de muito jovem, não ficava bem namorar um telegrafista, imagine. Então, o pai dela, conseguiu a transferência dele para a outra ponta do país. Mas… ele era telegrafista e assim se comunicavam e namoravam. Quando a minha mãe ficou grávida de mim, o velho disse que me criaria, mas que o pai sumisse. E foi assim, que fui criado na casa dos meus avós. Quanto ao meu pai, via pouco, conversava pouco com ele. Mas agora, que a gente tem quase a mesma idade, ficamos muito amigos.

Isso foi contado por Gabriel García Márquez a pedido do cineasta Ruy Guerra, amigo do escritor, em Havana, em 1989, num dos bares do Festival de Cinema de Cuba. O relato consta no livro Minhas Mulheres e Meus Homens, do Mario Prata, que estava presente na ocasião. A magia melancólica da história perpassa toda a literatura produzida pelo colombiano, em seu quase 70 anos de carreira. Gabo, como era carinhosamente chamado, cresceu cercado pelas historias do avô militar, Nicolas Márquez, veterano da Guerra dos Mil Dias, e pelos causos da avó Tranquilina Iguará, e na tentativa de reproduzir esses relatos ergueu uma das mais originais obra da literatura mundial, que culminou com o surgimento do realismo mágico na América Latina.

Mal comparando: a mesma luz que acendeu nele quando leu pela primeira vez as linhas iniciais de A Metamorfose, de Franz Kafka, me iluminou quando me deparei com a estirpe dos Buendía, condenada a cem anos de solidão, e a mágica cidade de Macondo. Em Gabo, produziu um Prêmio Nobel de Literatura (1982). Em mim, alguém que aprendeu que não há amarras possíveis para a literatura: há espaço para o sonho, para a magia e para invenção. Uma amiga, residente há alguns meses em Bogotá, capital da Colômbia, disse-me que a comoção pela morte de Gabriel García Márques é nacional. Em seus livros, ele pintou o rosto de todo o povo latino-americano. A vida segue o seu curso natural e a nós cabe apenas celebrá-lo e agradecê-lo por nos revelar um mundo fantástico. Fica o consolo que sempre teremos os seus causos.

Obrigado, Gabo!

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