Vozes que gritam contra o sorvedouro de pessoas

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Em K. e Você vai voltar pra mim, Bernardo Kucinski relata os dramas dos torturados e desaparecidos políticos durante a ditadura brasileira.

Os livros de Kucinski resgatam o clima opressor reinante no Brasil nas décadas de 60 e 70

Ao me reaproximar de K., de Bernardo Kucinski, não consigo deter o fluxo de um relato íntimo.

Em julho de 2013 eu havia sido convidado pelo Sesc a participar da Flip, por conta das comemorações de 10 anos do Prêmio Sesc de Literatura, o qual conquistei em 2010 com a seleta de contos Cavala. Em julho de 2013 também fazia um ano e oito meses que eu havia perdido a visão do olho direito. Tenho uma doença rara que gradualmente leva à cegueira, agressiva em ambas as vistas. No olho esquerdo, mesmo com o suporte de uma lente superespecial, atinjo não mais que 50% do que é considerada uma visão normal.

Ocorre que, a despeito das impossibilidades que tal condição provoca, eu ainda assim queria demasiadamente participar do evento. Achava-o simbólico, ímpar. Havia outra tensão, no entanto. Minha esposa não poderia me acompanhar, comprometida com o cuidado da nossa filha pequena, de modo que seria eu e a estrada ou eu e a frustração. Decidi arriscar, deixar a minha redoma sem companhia. Combinei com o Sesc de chegar a poucas horas da mesa comemorativa, na noite de sábado, e ir embora no dia seguinte, logo pela manhã. Tudo acertado, fui preparar a mala.

Tenho por costume levar um livro quando viajo, sempre um livro novo. Dentre os candidatos da fila, optei aleatoriamente por K., de B. Kucinski, romance publicado em 2011, pela independente Expressão Popular. Confesso que não havia reservado atenção merecida ao enredo, apenas lido que era centrado no regime ditatorial brasileiro, período que visitei num dos contos do meu segundo livro e, com mais frequência, no romance ainda não editado. Tomei o assento na janela, constatei (de maneira entusiástica) que a cadeira ao lado ficaria vazia e pousei o livro sobre os joelhos. Logo que o ônibus partiu rumo a Paraty, eu passei a primeira página e, a partir daí, desprevenidamente estartava a experiência literária mais pungente de que tenho ciência.

ÔÇó k_capaK. é uma obra-prima. Isso não basta, todavia, não dimensiona seu impacto. K. é um relato pungente de uma busca infecunda, um martírio, um lamento, um pranto contido. Embora curto (ou principalmente por isso) e tecido em recortes temporais, captura, de maneira avassaladora, a maldade, a angústia, o clima de insegurança e de medo que prevaleceu nos anos de chumbo, transportando o leitor para a sociedade sob opressão militar devido ao grau de absorvência. É uma leitura dolorosa, por conta disso. De embrulhar o corpo, incomodar. Lembro-me de fechar o livro de tempo em tempo. Abrir uma fresta na janela e respirar, fitar a paisagem fugidia que ia consumindo os 260 Km de distância entre as cidades. Mas logo retomar a trama.

O mérito dessa relação entre fascínio e horror, obviamente, é de Kucinski. Antes de principiar a história, o autor adverte: “Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Ou seja, onde a realidade não consegue fornecer pistas ocultas pela escuridão insondável, a ficção trata de rutilar com o esforço da imaginação. A verdade por trás da tessitura literária de K. é que, de fato, há uma investigação incessante, a procura sem trégua por Ana Rosa Kucinski que, em 1974, aos 32 anos, no início da ditadura Geisel, foi sequestrada pelas forças de segurança, no centro de São Paulo. Era professora do Instituto de Química da USP, casada com Wilson Silva (também desaparecido), com o qual partilhava a militância política, opondo-se ao regime à surdina. Ana é irmã de Bernardo, professor e jornalista, escritor. O abismo que se abre diante da falta de resposta é a matéria nuclear do romance.

A habilidade criativa de Kucinski revela-se na infiltração dos fatos na trama sem que isso comprometa sua qualidade ficcional. Não há descrição ou circunstância, embora historicamente precisas, que não pertençam à literatura, que desloquem a narrativa para o plano da não-ficção. K., um velho judeu polonês, escritor devoto à literatura iídiche, lança-se ao encontro do paradeiro da filha, da qual não recebe informações recentes. Visita o campus da universidade onde ela trabalha, depois interroga amigos, e daí agarra-se a qualquer retalho, nesga, fiapo de informação que possa clarear o caminho para o passo seguinte. À medida que prossegue incansavelmente, no entanto, dá-se conta de que não perscruta apenas a ausência, mas a própria ignorância em relação à vereda clandestina tomada pela filha e pelo genro, em relação aos atos abomináveis que são praticados “em defesa da ordem e do progresso nacional”.

Ainda assim K. não esmorece, nunca perde a esperança. Como revela em dado momento: “O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada”. E ser destemido, nesses tempos, é tão devastador quanto ser enganado. Aflito, o velho judeu apela por ajuda, por providências dentro do país e fora dele, aproxima-se de famílias destruídas pelo sumiço dos filhos, dos maridos, das esposas, rebaixa-se a negociar com agentes da repressão, prendendo-se à pistas falsas, mentiras, humilhações e escárnio dirigido ao seu tormento. Em K., há várias formas de crueldade. O silêncio é uma delas.

A mais chocante, obviamente, é a tortura. Ao contrário de inúmeros escritos que abordam o tema, Kucinski não trata a ditadura como um fantasma que assombra as páginas de seu romance. O autoritarismo e seus atos institucionais têm a mesma carga dramática de um personagem, um monstro que estica seus tentáculos pelos porões e celas, personifica-se nas figuras (não nomeadas) de assassinos como os delegados Sérgio Fleury e Cláudio Guerra (que, no livro Memórias de uma guerra suja, afirma ter incinerado os corpos de Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva numa usina em Campos), repousa nos alicerces da Casa da Morte, em Petrópolis, onde presos políticos eram seviciados barbaramente, depois tinham seus corpos esquartejados e transportados. Ao chegar aos assoalhos sangrentos dessas prisões, K. sobrepõe a desinformação com a hipótese de um destino inescapável. Resta, desse modo, a culpa.

Por que não percebeu o que estava acontecendo com a filha? Por que esperou dias para estranhar sua ausência? De imediato, renega a literatura, a diuturna dedicação zelosa ao iídiche, a “língua-cadáver”. Tenta realcançar a voz da filha por meio da leitura de cartas destinadas a outrem, à própria memória. Dos retratos, revive o amor paterno, as cenas em que interviu contra um aborrecimento, tal quando a menina descobriu que iria usar óculos. K. encontra fuga em reminiscências, pois ao tentar abraçar o corpo ausente da filha, sempre terá contra os braços a compleição de uma criança. A vida antes de se decretar o golpe militar, antes de, como diz aquela canção do Chico Buarque, “inventarem a tristeza”. Kucinski define a dor de um país num personagem.

ÔÇó voce vai voltar pra mim_capaTrês anos depois, premiado e traduzido para vários idiomas, K. ganha reedição da Cosac Naify, num belo projeto gráfico (comum ao selo), embora desfalcado das ilustrações de Enio Squeff, que retratava a densidade de cenas com traços tortuosos. Simultaneamente, é lançada a coletânea Você vai voltar pra mim, 28 contos, situados entre as décadas de 60 e 70, que, de mesma forma, têm como argamassa literária o drama dos sequestrados e torturados políticos, a contaminação dos dias daqueles que se opuseram ao regime, (re)agindo em clandestinidade. Obviamente que, diante de K., a seleta de histórias curtas não irradia a mesma impacção, sobretudo por conta da pluralidade, de filtros com que Kucinski deslinda alguns desses episódios, concedendo espaço para a ironia, o humor, a entrega de artimanhas e corrupções que muito esclarecem o país em que vivemos hoje. Bastam as leituras de A visita do inspetor-geral, Dr. Carlão e A lista, para se atestar que, cinco décadas depois, a democracia também serviu à imoralidade.

Outros contos, a exemplo de A negra Zuleika, mostram agentes de tortura sem a máscara psicótica, em atitudes desvalidas do comportamento sádico, trazendo à tona a expressão “banalidade do mal”, criada pela filósofa alemã Hannah Arendt, ao descrever o criminoso de guerra Adolf Eichmann, responsável pelo extermínio de milhares de judeus, como um homem comum que cumpria caninamente seu dever. Há ainda aqueles que se valem de casos emblemáticos como catalisadores da ficção, tal qual em A troca, onde a lista de presos políticos a serem libertados/exilados, divulgada por um grupo que sequestrara um cônsul, provoca tensão entre companheiros de um pavilhão penitenciário.

Não obstante, são novamente os relatos de dor, de inquietação, do luto de famílias arruinadas pela desaparição, dos lamentos sufocados nos porões dos departamentos de tortura que perturbam, que causam, da imersão na leitura, asfixia. Reprisando os momentos mais pulsantes de K., Sobre a natureza do homem, Você vai voltar pra mim, O velório e, especialmente, Joana mostram as terríveis sequelas das barbaridades cometidas pela máquina de repressão, a vilania que prevaleceu (e foi apoiada) durante a ditadura. O choque cabe aos fatos, mas não há dúvida de que a qualidade da prosa econômica, desprovida de panfletos e acusações, é o que torna as obras elementares na bibliografia sobre o regime militar. A brevidade é suficiente. Existe a história. E será justamente a história que comprovará que os livros de Kucinski são um marco na literatura brasileira.

Nove meses depois da viagem a Paraty, eu percebo que, muito mais que a efeméride, minha busca era pela superação, pela confiança de que, em algum momento futuro, minha condição seria revertida. Em novembro de 2013, eu fiz o transplante da córnea do olho esquerdo. Quarenta anos depois, o real paradeiro de Ana Rosa Kucinski ainda não foi oficialmente esclarecido.

K. e Você vai voltar pra mim

192 páginas (ambos)

Cosac Naify

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