Werther às avessas, “On the Road”, de Jack Kerouac, perpetuando seus ecos

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A Bíblia beat kerouaquiana inspira fãs até hoje e leva pessoas a percorrerem sua própria estrada

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Recentemente, a geração beat tem voltado à mídia com frequência, sobretudo por meio da indústria cinematográfica. Em 2007, foi lançado o filme Howl que conta a história do poeta Allen Ginsberg e o julgamento de seu livro Uivo, que havia sido considerado impróprio e colocado como réu diante do tribunal da Califórnia o poeta e editor Lawrence Ferlinghetti, que havia lançado o livro.  No mesmo ano, saiu o filme Cassady, não exibido no Brasil, diga-se de passagem, contando a época em que Neal Cassady fora motorista de um ônibus que atravessava o país.

Porém, os holofotes colocaram em evidência os beatniks com a recente transposição para o cinema de sua obra mais canônica: On the Road – pois bem, apesar de não ser adepto do uso desenfreado de termos da língua inglesa no português, não gosto do nome dado à obra em português, Pé na Estrada, por isso uso aqui o original – de Jack Kerouac, feita pelo brasileiro Walter Salles após décadas de especulação em Hollywood.

Símbolo da contracultura, a geração beat veio no momento da euforia do pós-guerra. O movimento, embora não organizado e nem reconhecido pelos próprios integrantes como um movimento, rompeu com vários valores da sociedade da época, como não estabelecer uma residência fixa, descompromisso com relações do tipo casamento, a liberdade sexual, o uso de drogas, entre outros.

Jack Kerouac usou várias das histórias vividas por ele e sua trupe para compor sua obra chave, situando o livro em um limbo entre um romance e um livro de memórias. É a história de Sal Paradise (alter ego do próprio Kerouac) que decide seguir viagem de Nova York à Denver para reencontrar os amigos Dean Moriarty (alter ego do seu grande companheiro de viagens Neal Cassady) e Carlo Marx (alter ego do poeta e amigo Allen Ginberg). As histórias se passam na década de 1940, mas o livro só foi publicado em 1957 depois de várias rejeições e inúmeras alterações, cortes de trechos e mudança dos nomes das personagens.

Os amigos vagam pelas estradas, pegando empregos temporários somente para poderem comer e comprar drogas e bebidas. Nesse ritmo frenético, as personagens se entregam a devaneios, discussões filosóficas, leituras de grandes obras da literatura (Marcel Proust, por exemplo, é frequentemente lido e citado no livro) e sexo sem limites e tabus – sim, eles foram uma grande referência para a cultura hippie.

Muito se falou do estilo, da frase kerouaquiana. Seu ritmo intenso e o improviso com as palavras lembram muito o jazz bebop, estilo pelo qual o próprio escritor e seus amigos de geração eram fascinados.  Sua escrita tem um estilo, que ele mesmo chamou, de prosa espontânea. Kerouac passou noites seguidas escrevendo o livro, depois de ter juntado várias folhas de papel, formando um enorme rolo, para que ele não precisasse parar de escrever para colocar sempre um novo papel na máquina. Assim, somos sugados para dentro do livro desde a primeira linha por esse ritmo desenfreado, tanto da trama, quando da linguagem.

O livro inspirou muitos seguimentos e outras obras artísticas ao longo das décadas. Influenciou, por exemplo, o escritor quebequense Jacques Poulin a escrever Volkswagen Blues, um livro que empreende também uma viagem pela América do Norte, mas com um tom bem mais frio e triste. VB mostra a falência do contato humano e das experiências que justamente impulsionaram a obra de Kerouac. VB é o filho abortado de OTR. Uma obra magnífica que ainda não tem tradução para o português (esse que vos escreve mantém o utópico sonho de ser o tradutor do livro no Brasil). Inspirou também o brasileiro Dodô Azevedo a refazer todas as rotas das personagens – como muita gente já pensou em fazer ao ler o livro – e a escrever seu próprio livro contanto o fato (acho que ele roubou minha ideia).

De certo modo, acredito que Kerouac tenha romantizado as viagens pelas estradas estadunidenses, mesmo se, em parte, eles realmente tenham saído às estradas à mercê das intempéries, sem dinheiro e muitas vezes sem destino. Nesse sentido, acredito que ele se aproximaria bastante de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Mas na medida em que o livro do escritor alemão levou as pessoas ao suicídio pelo mal de amor, apontam para lados opostos, para a experiência, para o, embora clichê, a busca de sua própria estrada.

Eu mesmo entrei nessa onda. Em dezembro de 2012, eu me aventurei, da costa leste à costa oeste, percorrendo mais de dez mil quilômetros em busca de algum resquício daquele mundo descrito por Kerouac na bíblia beat (isso é assunto para uma outra coluna, quem sabe). O fato é que o livro teve essa força, por isso o comparei à obra de Goethe.

Claro que mais timidamente, sem a mesma força do final dos anos cinquenta e início dos sessenta onde a moda era abandonar a vida, ir às estradas para ser um beat, o livro ainda impulsiona pessoas a botarem uma mochila nas costas e irem atrás de experiências, como Sal Paradise, Dean Moriarty, Marylou e Carlo Marx. Já foi dito que não é mais possível narrar, pois não há mais experiências. Para mim, On the Road é uma clara resposta, embora não premeditada, que contradiz as teorias desses estudiosos.

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