Wesley Peres resenha seu conto predileto: ‘A menor mulher do mundo’, de Clarice Lispector

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Foto-Wesley-PB

A menor mulher do mundo, lido com certa pressa, parece ser somente um conto sobre a descoberta na África, por um explorador, da menor mulher do mundo, consistida de poucos e inespecíficos centímetros. No entanto — parafraseando um certo Proust — as coisas só parecem ser elas mesmas e não outras pela imobilidade do nosso pensamento. Mobilizando-o, ele, o pensamento, faremos uma grande descoberta: todos os grandes textos literários são palimpestos móveis, padecem de várias camadas que se movem em níveis, podendo uma camada ser a mais superficial, num instante ou sob um certo olhar, sendo a mais profunda e rasurada, num outro instante ou sob um incerto certo olhar. Então que, numa das camadas móveis, dessa peculiar matéria geológica, encontramos A menor mulher do mundo como um pequeno e denso tratado acerca do amor — e o seu horror, que se perdoe a rima, mas, no caso, não há palavra mais precisa.

No Congo Central, o explorador Marcel Petre descobre os menores pigmeus do mundo e, “como uma caixa dentre de uma caixa, dentro de uma caixa”, ele se depara com o menor do menor, a menor mulher do mundo, resultado da “necessidade [que] a Natureza tem de exceder a si própria”.

Veremos, conforme percorremos a textura do conto, que o excesso atribuído à Natureza é apresentado como equivalente à potência violenta do amor: a Natureza, no universo do conto, é criadora de matérias que violentam pela estranheza, enquanto o amor se confunde com fenômenos humanos também estranhos a certa concepção unidimensional do amor (sempre do lado do bem); o amor, aqui, está num espaço intermediário entre a ternura e a posse que, se impossível, é substituída pela destruição. Posse e destruição estão no registro de uma crueldade amorosa, impulsionada pela ternura. Veremos ainda que, a mínima mulher, inédita matéria aos olhos humanos (pelo menos àqueles exteriores à floresta do Congo), será o “objeto-causa” do despertar da multidimensionalidade do amor.

O explorador, diante de “uma mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar”, diante da “coisa humana menor que existe”, diante do inominável, diante disso o explorador é compelido à inventar uma definição, menos do que isso, um nome: “Você é a pequena flor”. A violência do amor começa a se delinear pela nomeação, nomear já é um tanto devorar o outro, e amor já se desenha como impacto de algo inominável que habita o outro — Deleuze afirma que amamos o ponto de loucura do outro. Diante de tal impacto, a reação do nomear, a reação violenta de conferir margens a algo que se configura fora delas.

A narrativa sofre um corte, e passamos a acompanhar o impacto da contingência Pequena Flor sobre os espectadores de noticiários ao se haverem com a notícia da menor mulher do mundo.

Num apartamento, “uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo melhor prevenir do que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou o dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade”, saudade do que nunca possuiu. Assim, notamos que, no amor segundo C.L., nucleado pela perversa ternura, o ser amado corre o risco de se converter em objeto apequenado e devorado.

O ponto mais fundamental dessa teoria do amor como horror, está no parágrafo em que uma certa mãe, recorda uma história que ouviu da cozinheira sobre o tempo do orfanato. Uma das órfãs falece, as outras guardam o cadáver no armário até a freira sair. Então, elas “brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a”, tudo isso porque “a maternidade já [estava] pulsando no coração das órfãs”. Devemos sublinhar que, a modalidade de amor tida como a mais intensa (ao menos no senso comum, que não abrange poucos), a do amor materno, justo por ser o amor na sua mais alta voltagem, apresenta-se no conto como o mais cruel dos amores.

A partir dessa história contada pela cozinheira, a mãe “considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade do nosso desejo de ser feliz […] E o número de vezes que mataremos por amor”. A seguir, ela olha para o filho como se ele fosse um perigoso estranho, pois ela havia engendrado um ser que, como ela, como todos os humanos, é um ser apto à felicidade do amor, que se confunde com a crueldade e com malignos desejos endereçados ao outro, a quem mataremos sabe-se lá quantas vezes, por amor.

Até aqui, temos uma investigação do amor como crueldade sempre do ponto de vista daquele que ama — do amador, digamos. Mais ao final do conto, encontramos dentro de uma cápsula de linguagem, a condensação do que se passa do lado da Pequena Flor, metáfora de quem está na posição de ser amado: “Não ser devorada é o sentimento mais perfeito”.

Não ser devorado, eis o amor em sua perfeição, em seu ideal — e ideal se trata do inalcançável — abraçado pelo senso comum (que não inclui poucas gentes), eis o melhor que se pode esperar (não alcançar) do amor segundo C.L., apresentado nesse pequeno e denso tratado sobre o amor, disfarçado sob a máscara da história de um explorador no coração da África, que descobre menor mulher do mundo.

 

Trecho do conto ‘A menor mulher do mundo’, de Clarice Lispector

Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma susceptibilidade que exige que seja de mim, de mim!, que se goste e não do meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.

 

Trecho do conto ‘Monte Castelo’, de Wesley Peres.

Quando se tem uma história trágica. Bem, então se tem uma história. Quanto ao valor de se ter ou não uma história, isso é outra coisa. H. se ocupa desses pensamentos que o ocupam, que ocupam seu tempo (ele mesmo transcorrendo, pulsando, aproximando-se da morte). H. se ocupa desses pensamentos enquanto faz uma coisa tão prenhe de enquanto: almoçar. Com uma delicadeza que não possui, maneja os talheres a fim de produzir distância entre o osso e a carne de frango.

 

Wesley Peres é autor dos romances As pequenas mortes (Rocco, 2013) e Casa entre vértebras (Record, 2007), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2008 e indicado ao Portugal Telecom 2008. Publicou ainda os seguintes livros de poesia: Palimpsestos (Editora da UFG, 2007) e Rio revoando (USP\Com-Arte 2003). O conto ‘Monte Castelo’ integra a coletânea Como se não houvesse amanhã.

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