O romance Memórias de um Urso-Polar, de Yoko Tawada, é como as fábulas que ouvíamos quando éramos menores.
Em resumo: 2006, durante o inverno cinza de Berlim, a ursa Toska rejeitava seu filho Knut, o primeiro urso-polar nascido no Jardim Zoológico da cidade em muitos anos. A partir dessa ponta solta, a japonesa Yoko Tawada nos vai conduzir de volta aos tempos da Guerra Fria.
A autora nos seduz com uma escrita à primeira vista ingênua, musicada, pueril e hipnotizante, que apesar (ou por causa) do tom infantil de uma história sobre ursos-polares (que falam, pensam e escrevem), a moral e a crítica se tornam mais verossímeis que nunca.
Ler o livro de Tawada – contado sob a perspectiva de três ursos-polares e a prosa melódica da autora – é como dar um passeio pelo século XX.
Mais do que crítica política, o livro em si fala sobre a dura labuta do escrever. Yoko Tawada é uma daquelas autoras em que a vida e a obra se complementam num grande encaixe, sendo quase impossível decantar uma da outra. Ler seus livros sem conhecer sua trajetória é no mínimo incompleto.
Tawada sendo estrangeira
Ser estrangeiro é um tormento. Quem já viveu fora de seu país conhece a sensação: as traduções entaladas na garganta, os gestos emperrados no último instante, a xenofobia velada pelas costas são apenas uma fração dos problemas.
O cronista Ivan Lessa teria dito certa vez que em algum momento todos somos estrangeiros – seja lá fora ou no próprio país. Arrisco dizer que, às vezes, na própria cabeça.
Yoko Tawada sabe bem o que é ser estrangeira. O sotaque carregado e a pele diferente da multidão europeia não a deixam esconder sua origem desde os 22 anos, quando se mudou de Tóquio para Hamburgo.
Os seus primeiros ensaios, quase crônicas de tão leves, foram dedicados às reflexões sobre ser o forasteiro numa terra estranha, e às nuances de se deixar absorver por um outro idioma[1]. Ela é duplamente estrangeira: no país e na língua. Suas principais obras são publicadas não em sua língua mãe, o japonês, mas na adotiva, o alemão.
Memórias de uma ursa entre os homens
Seu livro começa pondo o leitor numa situação insólita: uma ursa-polar, num quarto de hotel, começa a manchar um papel com suas memórias.
Escrever: um ato estranho. Quando olhei para frase que havia acabado de colocar no papel senti vertigem. Onde estou agora? Entrei em minha história e desapareci nela. Para voltar, afastei meu olhar do manuscrito e deixei-o focar na janela até que eu finalmente estivesse de volta ao aqui e agora. Mas onde é o aqui? E quando é o agora?
Com uma prosa dançante, a ursa e ex-artista de circo nos narra suas motivações para escrever, sem uma razão especial senão a escrita em si. Abocanhando uma boa parte do século XX, acompanhamos a ursa-autora desde convenções políticas no coração da antiga U.R.S.S., em Kiev, às fronteiras da cortina de ferro, na Berlim Oriental.
Ao lançar sua autobiografia, a protagonista, com sua ingenuidade quase infantil, é elevada à categoria de celebridade pela sua condição única. No Leste, entretanto, ela não escapa da censura do estado, do assédio de jornalistas e editores, da pressão de ativistas políticos, da angústia escatológica humana e dos problemas de ter uma opinião eternizada sobre o papel. Ela termina por se exilar na Alemanha Ocidental e, posteriormente, no Canadá.
Por vezes, chegamos a esquecer que a narradora não é uma figura humana, o que nos leva até a questionar: ainda estou lendo uma história sobre ursos-polares?
Nesta primeira parte, Tawada se intromete nas entrelinhas do texto. As experiências de ser alguém estrangeiro, aprender uma língua nova e da agonia dúbia da escrita são os sentimentos que fazem enxergar a autora falando de suas próprias experiências escritas pelas patas de uma ursa-polar. Exagerando ao absurdo animalesco, Tawada consegue nos entregar uma grande reflexão em primeira pessoa, o que deixa o livro muito mais interessante.
Um passeio pelo século XX
Na segunda parte, a história entra mais afundo nas questões políticas da extinta União Soviética. A ursa Toska, filha da primeira ursa-narradora, é criada desde pequena para se tornar uma artista de circo. Neste momento, o foco narrativo será puxado para a Ursula, a treinadora de Toska, uma mulher soviética de carne e osso.
Ursula – cuja origem do nome remonta à palavra latina para pequena ursa – cria uma relação íntima com Toska e a faz dela sua amiga e confessora. As duas atravessam os últimos anos do século XX juntas, chegando a fazer turnês para além do mundo comunista.
Os animais tinham uma diferença clara de tratamento no Leste do mundo. Como a autora viria definir, Nos Estados Unidos, a função dos animais é ser pet, o cãozinho adorável da família. Na União Soviética, os animais eram representantes do socialismo, de como o regime conseguia controlar até a natureza dos ursos.
Um dia, de repente, o muro entre as duas Berlins desaba e com ele todo o sistema soviético. As Alemanhas, outrora tão diferentes, emergem unificadas. De um dia para o outro, os circos (propriedades do Estado) foram se fechando e os treinadores despedidos de seus ofícios artísticos. Não só Ursula, a domadora, como Toska estavam desempregadas.
O desencanto típico com o mundo pós-soviético atingiu as duas amigas. Enquanto Ursula viveria o resto dos seus dias em luto, Toska foi vendida ao Jardim Zoológico de Berlim onde, seguindo os passos da mãe, dedicaria o resto dos seus dias à escrita das memórias de sua amiga.
Ursula viveu mais dez anos depois da demissão. Ela estava decepcionada com a humanidade e não queria ter que dedicar muita energia a qualquer ser humano, nem a si mesma. […] assumi a tarefa de trazer sua vida ao papel. Diga-me: qual ursa no passado conseguiu escrever a vida de sua amiga humana? […]
Foi dito à época que a velha rigidez da mentalidade soviética tinha arrancado de Toska seus instintos maternais quando Knut nasceu, embora isso soasse ridículo até mesmo para um urso-polar. Essa tese, Tawada rejeitou com veemência.
O bicho
O ano era 2006, o céu já se tornara cinza em Berlim e os olhos do mundo se viraram àquela tragédia quase humana (se fosse uma vida humana, decerto teria sido esquecida pelos tabloides na manhã seguinte, mas por ser um urso partilhando de nossa miséria, tornou-se espetáculo do dia para a noite). Enquanto Toska se dedicava a escrita das memórias de sua amiga, Knut era criado pelos homens.
Embora Knut não tivesse que dançar ou ser treinado para um espetáculo de circo, assim como sua mãe, ele não deixava de ser uma atração. Já nascera uma celebridade e quando se deu conta, haviam filas para o ver.
Enquanto outros nomes da literatura tenham transformado os homens em animais, como no poema O Bicho, de Manuel Bandeira, na obra de Tawada o caminho é inverso: Knut é humanizado ao ponto de se questionar sobre sua origem como urso. Para ele, sua mãe é o cuidador que o amamentou quando criança, não Toska.
Se tudo tivesse ocorrido de acordo com a ordem natural, eu teria encontrado um corpo maternal na caverna. Mas na caverna onde cresci, não havia nada. Na frente do meu nariz havia um muro. Meu anseio pelo mundo além do muro não seria uma prova de que eu era berlinense? […]
No resto do livro, Knut viverá sob as reflexões acerca de um urso-polar fora de seu habitat natural, o que é possuir uma família e à ingênua espera dos leves flocos de neve, que ele sempre anseia ver no inverno.
Para além da prosa de Tawada, Knut viria a morrer em 2011, devido a uma encefalite, como o urso mais famoso do mundo.
Arremate
Como toda fábula, Memórias de um Urso-Polar tem uma moral catártica a nos ensinar, embora ela não esteja explícita no concluir da obra. Diferente das fábulas de Esopo, podemos buscar várias morais na história de Tawada. Esse é um daqueles livros que nos vai ensinar diferentes coisas à medida em que o (re)lemos em diferentes momentos da vida.
Referências
TAWADA, Yoko. Memórias de um Urso-Polar. Tradução de Lúcia C. de Abreu, Gerson R. Neumann. Todavia, 2019.
[1] Akzentfrei e Überseezungen, sem traduções para o português.
[2] Adalbert von Chamisso, autor francês que renunciou a sua língua materna para escrever em alemão.