Em Júbilo, Memória, Noviciado da paixão, Hilda Hilst cria uma lírica amorosa poderosa a partir do ponto de vista feminino
No ano de 1974, após ter publicado inúmeros títulos de poesia, ficção e dramaturgia, Hilda Hilst retorna à lírica com Júbilo, Memória, Noviciado da paixão, obra de rara grandeza. Se anteriormente seus versos já chamavam a atenção, nesse livro Hilda surpreende ainda mais, mostrando maturidade e complexidade na escrita.
Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão está dividido em 7 seções: Dez chamamentos ao amigo (10 cantos); O poeta inventa viagem, retorna e sofre de saudade (17 cantos); Moderato Cantabile (6 cantos); Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio (10 cantos); Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor (5 cantos); Árias pequenas. Para bandolim (19 cantos); Poemas aos homens do nosso tempo (17 cantos).
Nas sete partes, a linguagem estilística é bem marcante, o tema da “incompletude amorosa em busca de completude” (COELHO, Nelly), já recorrente na poesia hilstiana, é deveras elaborado, resgatando mitos medievais, da Antiguidade e, também, abordando questões contemporâneas. Se, na tradição poética, eram os homens que se dirigiam às mulheres, Hilda, com voz criadora, subverte esse posicionamento. Ela se dirigirá a um homem. A poeta falará sobre a lembrança do amor, e não hesitará em se proferir sobre o amor físico e a dor do abandono.
Em todos os cantos, o eu-lírico, essa amante arrebatada, lembra, questiona, divaga sobre sua paixão: um homem casado, importante, envolvido com política e que parece desprezar toda tessitura poética da “trovadora”. Por ser comprometido, o interlocutor se mantém anônimo e, por isso mesmo, será chamado de “amigo”, “Túlio” ou “Dionísio”.
Os chamamentos ao amigo são feitos através de versos eróticos que, tamanha a delicadeza, transmutam-se em lirismo amoroso. Em Dez chamamentos ao amigo, no canto 1, lemos:
Te olhei. E há tanto tempo/ Entendo que sou terra. Há tanto tempo espero/ Que o teu corpo de água mais fraterno/ Se estenda sobre o meu./ Pastor e nauta/ Olha-me de novo. Com menos altivez. / E mais atento. (página 17)
No canto 4, há:
Minha medida? Amor./ E tua boca na minha/ Imerecida./ Minha vergonha? O verso/Ardente. E o meu rosto/ Reverso de quem sonha./ Meu chamamento? Sagitário/Ao meu lado/Enlaçado ao Touro./ Minha riqueza? Procura obstinada, tua presença. (página 20)
A poetisa segue “cantando” seu amor ao amigo, até que, no canto 8, declara, contundentemente, a dor de sua ausência. Ela diz:
De luas, desatino e aguaceiro/ Todas as noites que não foram tuas./ Amigos e meninos de ternura/ Intocado meu rosto pensamento/ Intocado meu corpo e tão mais triste/ sempre à procura do teu corpo exato./ Livra-me de ti. Que eu reconstrua/ Meus pequenos amores. A ciência/ de me deixar amar/ sem amargura./ E que me deem/ A enorme incoerência/ De dasamar, amando,/ E te lembrando/ – Fazedor de desgosto-/ Que eu te esqueça. (página 23)
Mas ela não o esquece. O distanciamento do seu amado é fôlego para seguir amando e criando poesia. Se, na primeira seção, o interlocutor é chamado de “amigo”, na segunda o eu-lírico o nomeia de “Túlio”. No canto 12, a mulher divaga, fala ao seu coração sobre sua invisibilidade diante do homem que ama:
Ai, coração, lamenta e apaga/ Teu existir de sangue/ Essa desordenada convulsão/ Porque Túlio viaja e não te sabe./ Sabe apenas de si, e das notícias/Supremas da política, dos homens/ Fica atento à eloquência/ E de ti, coração(antes que a pedra/ Se julgue irmã da tua matéria/ Ouve, contido). De ti, Túlio não sabe. (página 42)
Em Moderato Cantabile, Hilda é mais explícita a respeito do anonimato necessário de sua paixão. Ela diz:
Sagitário-algoz, homem amor, teu nome/ Que é preciso esconder de meu poema./ Te chamará, quem sabe, Rufus, Antônio/ Se outros olhos se abrirem sobre o verso./ A justiça dos homens, essa trama imprecisa/ Me puniria a mim, me chamaria ilícita/ Se o verso se mostrasse com teu nome. (página 54)
Na quarta seção, a poetisa nomeia seu interlocutor de Dionísio e se proclama Ariana, venerando seu deus. Nesses versos, ela fala em relação à expectativa de esperar por Dionísio e confessa que sua ausência é oportuna, pois lhe proporciona uma maior inspiração poética, um constante fazer literário:
Que não venhas, Dionísio./ Porque é melhor sonhar tua rudeza/ E sorver reconquista a cada noite/ Pensando amanhã sim, virá./ E o tempo de amanhã será riqueza:/ A cada noite, eu Ariana, preparando/ Aroma e corpo. E o verso a cada noite/ Se fazendo de tua sábia ausência. (página 59)
Hilda prossegue e compara sua situação a de Catulo, poeta alexandrino, que cantava também suas fragilidades e dependência amorosa. Octavio Paz, em A Dupla Chama, observa que Catulo, em seus poemas, “faz confidências… o poeta que fala é e não é Catulo: é uma persona, uma máscara que deixa ver o rosto real e que ao mesmo tempo a oculta. O poeta converte o seu amor em um tipo de romance em versos…” (página 56). E assim faz Hilda nessa Ode ao seu amado. Lê-se:
Ariana e Catulo, luxuriantes/ Pretendem eternidade, e a coisa breve/ A alma dos poetas não inflama./ Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta/ Que seja sempre terra o que é celeste/ E que terra não seja o que é só terra. (página 66)
Ainda a respeito dessa seção, cabe mencionar que tal parte do livro foi musicada por Zeca Baleiro, que fez composições para os dez cantos de Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé, De Ariana para Dionísio. Nesse precioso trabalho, disponível na internet, os cantos são interpretados por vozes femininas que representam Ariana. São elas: Rita Ribeiro, Verônica Sabino, Maria Bethânia, Jussara Silveira, Angela RôRô, Ná Ozzetti, Zélia Duncan, Olívia Byington, Mônica Salmaso e Ângela Maria.
Na quinta parte, composta por 5 cantos, a poetisa não menciona o nome do interlocutor. Na sexta seção, o ser amado volta a ser chamado de Túlio. E, finalmente, em Poemas aos Homens do Nosso Tempo, Hilda dedica vários versos a poetas e amigos. Vale observar que esses últimos cantos abordam, incisivamente, questões sociais, morais e políticas. Surge aí uma Hilda questionadora, politizada e subversiva. Lembremos que o livro é de 1974, período vigente do regime militar. A poetisa, nesse momento, faz questão de mostrar que a poesia não é alienante; muito pelo contrário, é vivaz e atenta às coisas de todos os tempos, de qualquer tempo. Alerta que “calar” um poeta, não calará a sua ideia, nem sua indignação. Ela diz:
A muitos os poetas lembrariam/ Que o homem não é para ser engolido/ Por vossas gargantas mentirosas./ E sempre um ou dois dos vossos engolidos/ Deixarão suas heranças, suas memórias/ A IDEIA, meus senhores/ E essa é mais brilhosa/ Do que o brilho voraz de vossas botas./ Cantando amor, os poetas na noite/Repensam a tarefa de pensar o mundo. (página 105)
No fim, Hilda deixa um recado ao amigo, Túlio ou Dionísio, esse homem que despreza seu amor e seu ofício. É a superioridade do fazer poético sobre as coisas ínfimas, fúteis, materiais. Lê-se:
Enquanto faço versos, tu decerto vives,/ Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue./ Dirás que sangue é o não teres o teu ouro/E o poeta te diz: compra o teu tempo… / Irmão do meu momento, quando eu morrer/ Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:/ MORRE O AMOR DE UM POETA./ E isso é tanto, que o teu ouro não compra./ E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto/ não cabe no meu canto. (página 125)
Muitos aspectos em Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão fazem dele um grande livro. A estrutura neoclássica do poema, que lembra as canções de amigo, torna-se totalmente inovadora quando a poetisa, a mulher Hilda ousa cortejar um homem. Essa mesma mulher faz do corpo físico matéria de poesia, ligando-o aos conceitos de amor, memória, esquecimento, política, moral e história. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, longe de ser anacrônico, é uma ode ao fazer poético, uma verdadeira declaração de amor à poesia.
Referências:
COELHO, Nelly Novaes. Da poesia. Hilda Hilst. Cadernos de Literatura Brasileira, São
Paulo, n. 8, out. 1999.
HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2001.
PAZ, Octavio. A dupla chama amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
PÉCORA, Alcir. “Nota do organizador”. In: HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão.
São Paulo: Globo, 2001.