Publicação dos Impublicáveis – A consolidação da Geração Beat

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“Lá pelos idos de outubro de 1955”. Dizem as más línguas que foi aí que a Geração Beat começou pra valer. Dizem essas mesmas más línguas que existiu até um lugar específico, imaginam? Um lugar específico onde ocorreu o epicentro dessa malandragem toda; uma certa Six Gallery em San Francisco, Califórnia. E pra dar sustento pra toda essa falação, dizem também que o grande responsável por toda essa revolução foi um judeuzinho míope, franzino, que na época tinha 29 anos e ganhava a vida com trabalhos secundários; secretário de escritório de advocacia, faxineiro, consultor de vendas, essas porras torras, praticamente um Zé ninguém; até porque com essa idade ele já deveria estar formado, com sua esposa perfeita e um casal de cachorros o esperando retornar do trabalho todos os dias, não concordam? Eu discordo.

Se a Geração Beat havia tomado forma na década anterior, em Nova Iorque, com o método da prosódia bop espontânea e as visões incandescentes do franco-canadense Jack Kerouac, foi em 1955, que o judeuzinho míope e franzino Allen Ginsberg consolidou pra sempre o movimento literário nas entrelinhas da história contemporânea. Quando Ginsberg subiu ao palco da Six Gallery naquele outubro de 1955, o tempo parou, o espírito de Blake se fez presente na plateia e todos presenciaram a apoteótica primeira leitura do poema Howl.

Se os “expoentes da geração” de Ginsberg haviam sido “destruídos pela loucura” e “se arrastavam pela rua do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa”, ele havia se transformado em um novo tipo de expoente, o emissário sagrado vindo diretamente da boca do lixo; seria Ginsberg o porta-voz de uma geração desiludida com as promessas insólitas do pós-guerra, o porta-voz das prostitutas viciadas em heroína que perambulavam pelas alamedas estadunidenses, dos homossexuais que buscavam sua liberdade exterior, dos alcóolatras. Estava – mesmo que inconsequentemente – sob a responsabilidade de Ginsberg, dar voz aos personagens que a literatura convencional, formal e acadêmica havia emudecido.

Convite da leitura de poemas na Six Gallery, 1955. Fonte Desconhecida. Cortesia © Allen Ginsberg Estate
Convite da leitura de poemas na Six Gallery, 1955. Fonte Desconhecida. Cortesia © Allen Ginsberg Estate

Após a leitura de Howl naquela noite, o poeta e cabeça da editora City Lights, Lawrence Ferlinghetti, não tardou em mandar um telegrama a Ginsberg no dia seguinte, “quando receberei o manuscrito?”, escreveu. Ferlinghetti era – e ainda é – o Massao Ohno norte americano. O editor com excelente faro poético, que procura publicar os autores impublicáveis. Então bato o martelo novamente, foi através também de Ferlinghetti que a Geração Beat se consolidou de vez. A iniciativa de fazer público o que era restrito apenas a um grupo de indivíduos, um grupo de intelectuais boêmios e desajustados com a sociedade de seu tempo. Sem Ferlinghetti, talvez a poesia e prosa beat nunca tivessem visto a luz do dia.

Ginsberg disse posteriormente que não compôs Howl com pretensões de publicá-lo, nem recitá-lo para pessoas que não fossem de seu círculo íntimo de amizades. “Não queria que meu pai o lesse”, relatou o poeta. Louis Ginsberg, proeminente poeta conservador, relutou em aceitar o estilo de escrita do filho, e principalmente o caráter homoerótico de seus poemas.

Talvez seja essa a razão de Howl ser o que é. Ele foi escrito entre quatro paredes, sem o poeta imaginar que um dia seus versos sairiam de lá. A visceralidade, crueza e honestidade estão constantemente oscilando com as cenas descritas em cada verso; seja ao ser enrabado por motociclistas e gritar de prazer, a visão do anjo em Moloch, as sessões de eletrochoque no sanatório ao lado de Carl Solomon, da sublime santidade do ser. É exatamente essa a representação do poema, a sublime santidade do ser em todas suas oscilações de personalidade.

Allen Ginsberg durante a composição do poema Howl, San Francisco, 1955. Foto por Peter Orlovsky. Cortesia © Allen Ginsberg Estate
Allen Ginsberg durante a composição do poema Howl, San Francisco, 1955. Foto por Peter Orlovsky. Cortesia © Allen Ginsberg Estate

Allen Ginsberg foi o primeiro dos membros da Geração Beat a ter um trabalho seu publicado na íntegra, Howl and Other Poems foi publicado em 1956 e – dou um doce se vocês adivinharem – chegou causando polêmica. Foi das livrarias direto pros tribunais, sendo acusado de obscenidade. Ginsberg não só chocou seu próprio pai, como todos os pais de uma América extremamente conservadora. Os beatniks caíram na boca do povo, acompanhados de ódio, opressão e negação.

Enquanto seu livro corria pelas cortes estadunidenses, Ginsberg se mandou ao lado de Gregory Corso e William Burroughs para Paris. Não estava nem aí, fazendo valer o maior dos espíritos dos beats: o desbunde total. Ferlinghetti quase foi preso, mas se livrou por pouco, o livro foi considerado “inocente” das acusações. E seu autor na Europa, nem ligando, se divertindo em festas com escritores surrealistas.

Julgamento para considerar se Howl era obsceno ou não, o poeta e editor Lawrence Ferlinghetti se encontra no centro da foto, San Francisco, 1957. Fonte Desconhecida.
Julgamento para considerar se Howl era obsceno ou não, o poeta e editor Lawrence Ferlinghetti se encontra no centro da foto, San Francisco, 1957. Fonte Desconhecida.

Kerouac foi o grande responsável pela disseminação total da palavra com a publicação de On The Road em 1957. Mas foi através de Ginsberg que a América descobriu o que era e pra que vieram os escritores da Geração Beat, e descobriu também que os odiava, mesmo sem saber o porquê. Dizem as más línguas que tudo começou por conta de um judeuzinho franzino. Dizem essas mesmas más línguas, que foi em outubro de 1955 que a Geração Beat se consolidou. E pra completar, dizem esses baitas fofoqueiros, que o responsável por toda essa malandragem se tornaria o maior poeta norte americano da segunda metade do século XX.

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