A perda de Eco e de uma academia humanizada
Pelos corredores escuros de uma biblioteca de subsolo, fui iniciado em uma seita secreta que remontava há séculos antes de Cristo. O local era mal iluminado e frequentado apenas por aqueles que decidiram manter a tradição milenar. As janelas eram lacradas, a luminosidade, que era muito escassa, vinha pela escada que levava os frequentadores do local ao subsolo. Se quiséssemos ter noção do que havia no espaço, somente o teríamos com luzes especiais que afastavam os espectros noturnos.
Havia várias lendas locais, sendo que a mais antiga seria de que o criador da biblioteca, um dos pioneiros da região, teria tido uma morte sofrida e trágica e, por isso, seu espírito ainda habitava o local. Diziam também que havia ali uma passagem secreta para cômodos ainda não abertos e frequentados por ninguém de nossa geração. Porém, aqueles que construíram e controlavam a biblioteca, religiosos que eram, tratavam de fazer com que todos ali se esquecessem disso dizendo que o espírito de Deus é que guiava o local.
Guardando bem à parte todas as respectivas diferenças de estilo, os dois parágrafos acima, lembram, mesmo que distantemente, a tão célebre biblioteca do romance O Nome da rosa (1980) de Umberto Eco. A tentativa, talvez falha de minha parte, de fazer um curto texto que se aproximasse na ambientação dessa obra-prima é fazer uma justa homenagem àquele que nos deixou recentemente. Tirei essas descrições de um lugar bem peculiar para mim: o antigo prédio no qual funcionava a central da Biblioteca Pública de Maringá, onde fui estagiário, durante minha graduação, por um ano e meio.
A seita da qual eu falo é literária e essa trupe toda iniciada eram os outros estagiários – dos cursos de letras, história, ciências sociais, pedagogia, geografia e outros – que compartilhavam o prazer pelos livros e pela literatura. O local era mesmo um subsolo mal iluminado e empoeirado. Mas foi ali que eu, já estudante de letras, fui mordido pelo bicho literatura e decidi que faria dela minha profissão.
Foi também naquele local, entre os momentos em que não deveria ajudar os frequentadores a buscarem o livro desejado ou não deveria estar organizando as estantes bagunçadas, que eu li muitas obras que me moldaram. Uma delas foi O Nome da rosa (1980). Mais tarde, descobri também que um tal Jorge Luis Borges também tinha uma certa onipresença dentro daquele prédio e frequentemente provocava calafrios literários por entre aquelas estantes que, por sua vez, embora finita, tinham o mesmo desenho da Babel infinita borgiana. Na minha mente, claro!
Umberto Eco foi muito marcante para mim, não só naquele momento em que eu descobria mais profundamente a literatura como uma grande expressão humana e artística, mas também como base da formação de meu pensamento enquanto pesquisador, que, cabe dizer, ainda está em formação e talvez sempre esteja. Não sou um especialista em Eco, nem li tudo o que ele publicou, mas gostei muito de tudo que li.
Jovem e tolo, acreditei por muito tempo que a literatura seria a salvação para o mundo. O acesso à literatura para mim separava um mundo de tolos de um mundo de iluminados. Eco me ensinou que a literatura não pode ser pão para aqueles que têm fome e que o fato de ser literato não julga o caráter de ninguém, pois há muita gente no meio literário que não tem nada de “iluminado”. Porém, também me ensinou que ela pode ser uma ferramenta de abertura de horizontes, de ver as coisas em outras perspectivas.
Posso estar muito enganado, mas eu não via em Eco certo ranço que vejo nas discussões acadêmicas. A maioria dos seus livros, dos que eu li, obviamente, embora tivessem boas e profundas reflexões, não tinha uma busca por uma verdade dogmática – se prestarem atenção, vão ver que ele caçoa de dogmas em suas obras literárias –, coisas que vejo não só em livros, mas em debates, encontros, simpósios, congressos, departamentos e bancas por quase todos os lugares por onde passo.
Vejo, em muitos momentos, um didatismo em Sobre a Literatura (2002) e Seis passeios pelo bosque da ficção (1994), que talvez não apareça nas suas obras sobre semiótica. Ler Eco é como conversar com um erudito que gosta muito de usar o popular para se expressar. Por isso gostei tanto do tão criticado romance A misteriosa chama da Rainha Loana (2004), pois, para tentar recuperar a memória, Yambo, livreiro de meia-idade de Milão, volta para a casa de seus avós nas montanhas do Piemonte a revirar coisas da infância como discos, gibis e jornais. Um erudito com o pé no popular.
Contudo, essa pseudo-facilidade em ler Eco pode levar alguns à ruína. A carga de referências históricas, políticas, artísticas, literárias e de figuras do show business e entretenimento é gigantesca. Sem contar o emaranhado de caminhos, trilhas, pistas, crenças deixadas pelo caminho no magnífico O pêndulo de Foucault (1988), história na qual três redatores de Milão se deixam levar por indícios de um complô que teria tido início no século XIV e teria chegado até o século XX na Europa. O romance é cheio de armadilhas e uma sátira a muitas estruturas.
Eco também era muito polêmico: afirmou ter inventado Dan Brown. Se em O pêndulo de Foucault (1988), o tom é humorístico e irônico em relação à crença em teorias da conspiração, Brown parece ser um próprio personagem saído do romance de Eco, pois leva a cabo em seus romances a crenças em ideias, inicialmente críveis, mas que no fim se tornam estapafúrdias e baseadas em lendas e não em fatos.
Em relação às tecnologias, Eco não chegou a ser completamente resistente, mas acredita que elas não tomarão os lugares de algumas estruturas tradicionais, como o livro impresso, por exemplo. Em relação às redes sociais, afirmou que, embora haja uma democratização no acesso a elas, também se deu voz aos idiotas, e são esses que ficam todo o tempo publicando asneiras nas timelines do mundo – é só olhar o próprio facebook por alguns minutos para concordar com ele.
Enfim, perder Umberto Eco é perder um crítico, romancista e pensador moderno que tinha ainda muita fé na literatura, mas que conhecia como poucos o poder, tanto positivo, quanto negativo, do homem. Perder Eco é ter uma lacuna na minha estante dos vivos, mas é preencher uma prateleira toda na minha biblioteca de imortais.