Referências a Dom Quixote em grandes romances: Ulisses, Os Três Mosqueteiros, Tom Jones, Quincas Borba, entre outros.
Quem nunca ouviu falar de Dom Quixote? Os episódios mais marcantes e cômicos das aventuras do escanzelado cavaleiro, o engenhoso fidalgo Dom Quixote, e do seu fiel, mas interesseiro e falador, escudeiro Sancho Pança são conhecidos de quase todas as pessoas, mesmo daquelas que nunca puseram um olho em cima de nenhum exemplar daquela que é uma das obras mais preciosa da literatura mundial e o mais importante de todos os romances jamais escritos da história da literatura ocidental. Quem não associa gigantes que são moinhos a Dom Quixote? «Somente Cervantes e Shakespeare ocupam a mais alta eminência num determinado pormenor: nunca poderemos passar à frente deles, pois eles já estão sempre à nossa frente.» sentencia Harold Bloom em O Cânone Ocidental. «Cervantes é tão exclusivamente o autor do Dom Quixote que o autor e obra quase se confundem. Cervantes só parece ter vivido a sua desgraçada vida de soldado, cativo dos mouros e literato pobre para acumular as experiências das quais aquela grande obra é o resumo, o julgamento e a transfiguração. O resto da sua actividade literária parece apenas a preparação da obra principal», escreve Carpeaux, na monumental obra História da Literatura Ocidental.
Harry Levin (citado por Harold Bloom, em Génio) chamou a atenção para o gigantesco paradoxo que é esta obra: «que um livro sobre a influência literária, ou antes, contra a influência literária, tivesse tido uma influência literária tão ampla e decisiva». Foi, e é, grande a influência de Dom Quixote; Dom Quixote marca a fronteira entre o romance pitoresco, e o romance moderno; é uma obra prima do humor; é uma obra realista, que opõe a dura realidade às ideias, ideais e subjetividade do Homem; é um romance polifónico, isto é, interpreta a realidade através de diversos pontos de vista; ao interpretar a realidade, não se limita a tentar descrevê-la, tenta também modificá-la; usa e parodia diversos gêneros e técnicas literárias; atribui a autoria do romance a outro autor, o árabe Cide Hamete Benengeli, para dar credibilidade à narrativa, fazendo do autor, Cervantes, alguém que se apoderou dos papéis por acaso, tomando nas suas mãos a responsabilidade de os trazer a público – esta técnica popularizou-se depois, durante o Romantismo, e ainda hoje continua sendo bastante utilizada; etc.
Quixotesto tornou-se um adjetivo; Dulcinéia transformou-se num arquétipo do amor platônico: é a amante desejada, inacessível, inexistente; Dom Quixote é o modelo de todos os heróis solitários que batalham pelas suas causas, pelos seus ideais, ou que simplesmente vagueiam pelo mundo em busca da sua alma gêmea, mesmo tendo todo o mundo, e até a crueldade dos fatos contra si; Sancho Pança é a voz da sabedoria simples e pragmática, a voz da razão, por vezes desarrazoada, daqueles que seguem com admiração os que ousam mudar o mundo. Só há duas formas de entrar na história da literatura: criar uma nova literatura ou criar uma obra-prima. Marinetti, por exemplo, ficou na história como criador do Futurismo – quem lhe recorda uma obra? Cervantes conseguiu ambas as coisas, simultaneamente.
Mas, para além de uma influência formal, há outra influência, talvez menos interessante para críticos e acadêmicos, porém mais engraçada para amantes de livros e literatura, ou o inverso. São as referências textuais. Quem tenha lido Dom Quixote, e o tenha presente na mente enquanto lê, encontrará muitas e diversas referências nas entrelinhas, muitos piscares de olho, tanto nos episódios que se contam como no enredo do que se conta; mas quanto a essas referências pode-se sempre argumentar que são coincidências. Selecionei, portanto, 7 obras de 7 autores que contêm referências explícitas a Dom Quixote:
1 – Tom Jones, de Henry Fielding
Onde é apresentado um dos mais simpáticos barbeiros [Benjamim] que a História regista, incluindo o barbeiro de Bagdade e o próprio barbeiro do Dom Quixote.
Vem tu, que inspiraste Aristófanes, Luciano, Cervantes, Rabelais, Molière, Shakespeare e Mariveux, encher as minhas páginas de humor; até que a humanidade aprenda a arte de rir sem se enfadar com os disparates alheios, e a humildade de lamentar os seus.
2 – A Vida e Opiniões de Tristam Shandy, de Laurence Sterne
(…) o pastor que aqui nos ocupa tinha-se tornado tema de conversa por causa de uma grande falta de decoro, que contra si mesmo cometera, contra a sua posição e o seu ofício divino; – falta essa que consistia em nunca aparecer montado em nada melhor do que em cima de um cavalo que era uma escanzelada e miserável pileca, avaliado em cerca de uma libra e quinze xelins; o qual, para abreviar toda a descrição, era irmão direito do Rocinante, tanto quanto parecença congénita o poderia ter feito; em tudo correspondia à sua descrição no mínimo detalhe, – com a excepção de eu não me lembrar de ouvir dizer em lado algum que o Rocinante tivesse pulmoneira; e que, além do mais, o Rocinante, como é o destino de todos os cavalos espanhóis, gordos ou magros, – era sem dúvida nenhuma um cavalo em todos os aspectos.
3 – Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas
Pois o nosso môço tinha montaria, e esta era coisa tão digna de nota que foi mesmo notada: tratava-se de um rocim do Béarn, de doze ou catorze anos, amarelado, sem crina no rabo, mas não sem feridas nas pernas, e que, embora caminhando com a cabeça mais baixa que os joelhos, o que tornava inútil o uso da gamarra, ainda fazia as suas oito léguas diárias. Infelizmente, as qualidades dêsse cavalo estavam tão bem ocultas debaixo do seu pêlo estranho e de sua andadura grotesca que, naquele tempo em que tôda a gente entendia de cavalos, a aparição do supracitado rocim em Meung, onde êle entrara um quarto de hora antes pela Porta de Beaugency, produziu um espanto cujo efeito desfavorável se refletiu, inclusive, sôbre o cavaleiro.
E êsse espanto foi sobretudo penoso para o jovem d’Artagnan (assim se chamava o D. Quixote dêsse outro Rocinante), porque não lhe escapava o ridículo em que o punha a tal calvagadura, por bom cavaleiro que fôsse; assim é que suspirara muito ao aceitar o presente que lhe fizera o Senhor d’Artagnan pai. Sabia que semelhante animal valia umas vinte libras; mas é verdade que as palavras que acompanhavam o presente não tinham preço.
4 – Quincas Borba, de Machado de Assis
– Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na água. Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino.
5 – As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain
(…) Quando recebemos a notícia de que tudo estava pronto para atacarmos, saltámos da floresta, descendo o morro onde nos tínhamos emboscado. Mas não havia espanhóis, nem árabes, nem camelos ou elefantes. Não havia mais do que um piquenique de uma escola e apenas crianças da 1.ª classe. Assaltámo-las e perseguimo-las pelo vale, mas o assalto não deu grande resultado, a não ser algumas bolachas doces, embora Ben Rogers conseguisse um boneco e Jo Harper um livro de hinos e um catecismo. Pouco depois o professor interveio e nós tivemos de devolver tudo e fugir. Não tinha visto quaisquer diamantes e disse-o ao Tom. Ele disse que havia montes de diamantes, e que também havia árabes e elefantes e todas as outras coisas. Perguntei-lhe porque é que nós não os tínhamos visto. Respondeu-me que eu sabê-lo-ia sem ter necessidade de fazer perguntas, se não fosse tão estúpido e se tivesse lido um livro intitulado Dom Quixote. Disse que era tudo magia, e que havia centenas de soldados por aqui, bem como elefantes e riquezas, etc., etc. No entanto, e como os nossos inimigos eram mágicos, disse que eles tinham transformado a expedição numa excursão de crianças, para se rirem de nós. Eu disse que então teríamos de fazer uma emboscada aos mágicos. Tom Sawyer disse que eu era parvo.
6 – Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust
O Sr. de Norpois ergueu os olhos para o céu, porém sorrindo, como para atestar a enormidade dos caprichos aos quais a sua Dulcinéia lhe impunha o dever de obedecer. Não obstante, falou a Bloch, com muita afabilidade, dos anos terríveis, talvez fatais, que a França atravessava. (O Caminho de Guermantes)
Não seria tão difícil como eu achava que o Sr. de Charlus concordasse com o meu pedido de apresentação. Por um lado, no decurso dos últimos vinte anos, esse Dom Quixote lutara contra tantos moinhos de vento (muitas vezes parentes que ele pretendia terem se comportado mal com ele), com tanta freqüência proibira alguém “como pessoa impossível de ser recebida” em casa de tais ou quais Guermantes, que estes começavam a ter medo de que os indispusesse com todas as pessoas de quem gostavam, que os privasse até a morte da convivência de alguns estreantes que lhes despertavam a curiosidade, para esposar os rancores trovejantes porém inexplicáveis de um cunhado ou primo que desejaria que por ele abandonassem mulher, irmão e filhos. Mais inteligente que os outros Guermantes, o Sr. de Charlus percebia de que só levavam em conta as suas proibições uma vez em duas, e, antecipando o futuro, temendo que um dia fosse dele que se privassem, começara a contemporizar, a baixar seus preços, como se diz. Além do mais, se possuía a faculdade de dar por meses ou anos uma vida idêntica a uma pessoa detestada a esta não teria tolerado que fizessem um convite e seria antes capaz de se bater como um carregador contra uma rainha, dado que para ele não mais contava a qualidade de quem se lhe opunha. Em compensação era possuído de freqüentes explosões de cólera para que não fossem muito fragmentárias. (Sodoma e Gomorra)
– O Sr. de Charlus está encantado pelo fato de a Srta. Vinteuil e sua amiga não terem vindo. Elas o escandalizam demais. Declarou que seus costumes eram de meter medo. A senhora não imagina como o barão é pudico e severo no terreno dos costumes.
Ao contrário do que Brichot esperava, a Sra. Verdurin não se divertiu:
– Ele é imundo – respondeu. – Proponha-lhe fumar um cigarro em sua companhia, para que meu marido possa levar sua dulcinéia sem que Charlus perceba, e esclarecer o rapaz acerca do abismo em que está caindo. (A Prisioneira)
7 – Ulysses, de James Joyce
O jovem Colum e Starkey. George Roberts está a tratar da parte comercial. Longworth vai-lhe fazer uma boa recensão no Express. Oh, irá? Gostei do Vaqueiro de Colum. Sim, eu acho que ele tem aquela coisa invulgar, génio. Acha que ele tem génio realmente? Yeats admirava o seu verso: Como em selvagem terra um vaso grego. Admirava? Espero que você consiga vir esta noite. Malachi Mulligan também vem. Moore pediu-lhe para levar Haines. Vocês ouviram a piada da menina Mitchell sobre Moore e Martyn? Que Moore é a loucura de juventude de Martyn? Muito sagaz, não é? Eles fazem lembrar Dom Quixote e Sancho Pança. A nossa epopeia nacional ainda está por escrever, diz o Dr. Sigerson. Moore é o homem para isso. Um cavaleiro da triste figura aqui em Dublin. Com um kilt açafrão. O’Neill Russell? Oh, sim, ele deve falar a grandiosa língua antiga. E a sua Dulcineia? James Stephans está a fazer alguns esboços sagazes. Estamos a ficar importantes, parece.
Bibliografia (não indico as páginas onde os excertos acima se encontram, para proporcionar uma excelente leitura a quem tiver a curiosidade de os procurar nas obras referidas; a ortografia das citações está conforme as obras de onde os textos foram retirados):
Assis, Machado de: Quincas Borba, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994;
Bloom, Harold; Génio – Os 100 autores mais criativos da história da literatura, Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2014;
Bloom, Harold: O Cânone Ocidental, Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2011;
Carpeux, Otto Maria: História da Literatura Ocidental, Leya – Livraria Cultura (edição digital, em volume único);
Cervantes de Saavedra, Miguel: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Volume I Porto: Livraria Civilização Editora, 1999 (tradução de Daniel Augusto Gonçalves, e Arsénio Mota) – o original El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha;
Cervantes de Saavedra, Miguel: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha, Volume II Porto: Livraria Civilização Editora, 1999 (tradução de Daniel Augusto Gonçalves, e Arsénio Mota) – o original Segunda Parte Del Ingenioso Cavallero Don Quixote de La Mancha;
Dumas, Alexandre: Os Três Mosqueteiros (2 volumes), São Paulo: Difel, 1960 (tradução de Moacyr Werneck de Castro);
Fielding, Henry, Tom Jones, Mediasat Group, S.A., 2004 (tradução de Daniel Augusto Gonçalves);
Joyce, James: Ulisses, Lisboa: Relógio D’Água, 2013 (tradução de Jorge Vaz de Carvalho);
Proust, Marcel: Em Busca do Tempo Perdido (7 volumes, em versão digital, da edição da Editora Brasileira Ediouro, com tradução de Fernando Py);
Sterne, Laurence: A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (2 volumes), Lisboa: Edições Antígona, 1998 (tradução de Manuel Portela);
Twain, Mark: As Aventuras de Huckleberry Finn, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1991 (tradução de Miriam Marder Silva Monteiro).