O projeto 12 Contos continua! Vamos ao nono conto
Entre as peras e as laranjas de uma banca de frutas, duas comadres deixaram de lado a habitual conversa de doenças e remédios. A preocupação era outra:
“Joaquim está dormindo toda noite em casa, tem saído pouco e sem demorar. Estou até estranhando.”
“Dizem por aí que a outra não quer mais olhar na cara dele.”
“Como é a história? Diva não quer mais Joaquim?”
“Disseram que ela gritou para rua toda ouvir que ele desaparecesse e nunca mais voltasse lá.”
“Tem certeza, Almerinda? Pois agora ela vai ter que querer e é dessa vez que falo com ela.”
“Então é agora, Aurélia, ela está ali, perto da banca de peixe.”
“Segure aqui a minha sacola, por favor, que eu volto já.”
Apesar do ruído da feira, Dona Almerinda não fez muito esforço para ouvir a conversa do lugar em que estava. Na banca de peixe, Dona Diva tentou sair de fininho, mas Dona Aurélia a pegou pelo braço.
“É com a senhora mesmo que eu quero falar. Não vou bater não, lhe segurei para senhora não fugir.”
“Diga. Pode falar.”
“Que história é essa que a senhora não quer mais Joaquim?”
“Que Joaquim?”
“Eu estou ficando velha, mas nunca fui besta. Eu sei que a senhora é a piranha do meu marido!”
“A senhora me respeite!”
“Eu não respeito vagabunda! E agora vou dizer tudo o que tá engasgado aqui durante esses anos todos.”
As pessoas se aglomeraram ao redor, mas ninguém se meteu para ajudar ou apartar.
“Lá atrás, quando Joaquim era novo, com saúde e com dinheiro, ele chegava do trabalho, eu me arrumava toda cheirosinha e ele me deixava em casa chupando dedo para ir atrás da senhora. Nessa época ele servia né? E agora que ele tá quebrado, velho e doente, a senhora não quer mais? Mas vai ter que querer.”
“Eu não sou obrigada.”
“É obrigada sim e quem tá obrigando sou eu que sou a esposa legítima! Vai ficar como sempre foi: dividido. Lá e cá. Está me ouvindo? Faça uma comida bem gostosa que hoje mesmo ele vai para sua casa. E ai da senhora se o mandar voltar.”
Dona Aurélia deu as costas e saiu sem esperar resposta. Dona Diva, com a cara calçada de vergonha, nem terminou de fazer sua feira.
***
Em casa Seu Joaquim cochilava no sofá com os cabelos brancos despenteados, a camisa desabotoada, a barriga para fora e a barba por fazer. Dona Aurélia foi direta.
“Levanta, Joaquim. Tira essa barba e toma um banho. Diva está te esperando para jantar.”
“Quem?”
“Diva, a sua rapariga. Lembrou agora? Pensou que eu não sabia? Pois eu sempre soube quem era e onde morava.”
“Oxe, mulher, que conversa torta é essa?”
“Não se faça de besta que é pior. Ela pensa que depois que aproveitou vai deixar o resto para mim? E agora que tu tá velho, doente e liso ela vai te deixar? Mas não vai mesmo. Eu já resolvi tudo. Se arrume e vá. Ela já tá avisada.”
Aurélia seguiu para a cozinha com as sacolas da feira, e continuou esbravejando:
“Eu sei que desde o começo do casamento que te divido com aquela rapariga e eu aguentei. Mas isso eu não aguento não. Agora é tarde demais para ela desistir. Eu que não vou cuidar de você sozinha. Não vou mesmo. O marido é meu, mas é dela também. Até que a morte nos separe vale igualmente para ela. Tem que aguentar na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza.”
Seu Joaquim não disse mais nada. Mais tarde, ele se perfumou como fazia em várias outras noites nesses anos todos de casamento. Agora sem desculpas ou enrolação e de cabeça baixa só disse: “Eu já vou”. Dona Aurélia não respondeu. Para ela não era questão de ciúme ou traição, era questão de justiça e falou para si mesma assim que ele bateu a porta: “Se ela comeu a carne que roa os ossos também, ora essa”.