Conto: Tremores

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 O projeto 12 contos continua! Apresento o oitavo conto

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A missa acabou e eu não quis cumprimentar ninguém. Fui para casa. Sete dias após a tragédia eu ainda me lembrava de exatamente tudo o que aconteceu naquela madrugada.

Parecia que alguém arrastava minha cama pelo quarto. Os móveis balançavam e as janelas tremiam. Foi por poucos segundos e logo adormeci outra vez. Acordei com o toque crescente do celular. Não distingui a direção do som. Guiei-me pela luz do aparelho piscando sobre a escrivaninha e saltei da cama. No escuro, enrosquei os pés nas roupas espalhadas pelo chão. Tropecei e caí. A quina do móvel estava perto demais. A minha cabeça latejava. No celular: Clara – chamando. Telefonemas no fim de madrugada nunca trazem boas notícias, acreditem. Eu atendi, mas meus neurônios ainda dormiam. Do outro lado da linha uma voz gritava em meio ao choro e ruídos de interferência na ligação.

“MARCELO? Marcelo me ajuda, o prédio caiu!”

“Como é?”

“Desmoronou com o tremor que deu agora.”

“Calma, fica aí por perto, chego num minuto.”

“Marcelo, EU ESTOU DEBAIXO DO PRÉDIO!”

Parecia um pesadelo, mas a dor, resultado do choque da minha testa com a quina do móvel, me dizia que eu estava acordado. Afundei num oceano de perguntas. Seria um trote? Se não fosse, o que fazer para resgatá-la? Como é possível ela me ligar se diz estar soterrada? Fui içado de volta à realidade pela voz de Clara. Algo escorria no meu rosto, tinha gosto de sangue.

“Marcelo tá me ouvindo?”

“Estou, mas como foi isso? Você está com o celular?”

“Deixei debaixo do travesseiro e agora o encontrei. Estou numa brecha muito apertada, minhas pernas estão presas.”

“Calma, eu vou te tirar daí.”

Deixei-a esperando na linha. Acendi a luz. Um corte no meio da testa derramava sangue no meu rosto. Lavei o ferimento, vesti um casaco e arranquei com a moto. O vento gelado lambia meu rosto. Tinha esquecido o capacete. Durante o trajeto pensei no que dizer para distraí-la, mas como distrair alguém que está num buraco debaixo de toneladas de entulhos e restos de mobília? Parei a moto em frente ao que restava do prédio. Os vizinhos ao redor se afastaram quando me aproximei. Imagino a triste figura que eu era naquele momento: um cara de cueca listrada, casaco e com a testa rasgada onde o sangue voltava a escorrer. Parecia até que eu tinha saído do meio dos escombros. Notei vários celulares apontando para mim, me filmando. Ainda não soube se algum desses vídeos foi parar no Youtube.  A polícia cercava o local. Furei o bloqueio de fita amarela. Fui parado por um bombeiro que tentava me expulsar e não me deixava explicar. Então arrumei coragem e cresci para cima dele. “ESPERA, CARALHO, ME ESCUTA”. Ele me soltou, contei o porquê de eu estar ali e lhe entreguei o celular. Outros bombeiros e uns policiais se aproximaram e, no viva voz, conversaram com minha namorada. Expliquei o machucado na testa e me devolveram o celular. Fui encaminhado a uma ambulância, levei quatro pontos na testa. Acompanhava a busca o mais perto que eu podia enquanto falava com Clara tentando acalmá-la. Ao ouvir minhas palavras esperava que eu também me acalmasse. Não falei para ela sobre o risco de desabamento e de como isso podia esmagá-la. Examinando a planta do prédio, a equipe de resgate fazia projeções do possível local onde ela estava.

“Clara? Pode me ouvir?”

“Posso, mas estou com medo.”

“Eles estão fazendo de tudo para te resgatar, meu amor.”

“Marcelo?”

“Fala.”

“Acho que meu celular vai descarregar. Mas ó, não esquece que eu te amo.”

Estremeci. O que fazer para não perdê-la? O celular dela apitava. Bateria fraca. Antes que eu pudesse responder, senti as pernas bambas e o chão tremendo sob os meus pés. As pessoas correram para se proteger. Era um tremor mais forte que o anterior. Vi os entulhos cinzentos derramando-se uns sobre os outros, espalhando-se ainda mais. Com o desmoronamento houve uma forte explosão. Um botijão de gás explodiu e a pressão fez outros três também explodirem. As equipes de busca foram arremessadas para longe e uma nuvem de poeira cobriu a rua. Fui atingido por destroços, mas não me afastei. Não sei se a bateria tinha descarregado ou o pior tinha acontecido, mas a ligação estava encerrada. Eu quis acreditar que Clara ainda estava viva e que a brecha permanecia intacta, protegendo-a. Tentei ligar e como ela não atendia me lancei sobre os escombros. Chorava e cavoucava as pedras. A poeira arranhava meus olhos e o entulho feria meus dedos. A cada pedra retirada sabia que ficava mais perto dela, como eu não fizera isso antes? Várias mãos me agarraram e eu gritava por Clara. Fui imobilizado e a injeção de alguma substância foi me acalmando, adormecendo meu corpo, bloqueando minhas forças. Já na ambulância vi a aurora que coloria o céu de cor-de-rosa. Por dentro eu gritava e esperneava, mas por fora eu era uma estátua. Desligavam-se cada um dos meus sentidos: visão, tato, audição e a caminho para o hospital senti que perdia a minha namorada.

 ***

 Foi difícil aguentar a missa, o chororô, as homenagens. Agora, já tão perto de casa, estou feliz por ter ido, devia agradecer de alguma forma àqueles três bombeiros que perderam suas vidas para resgatar a minha Clara. Ela ainda se recupera dos ferimentos nas pernas e por isso não me acompanhou à igreja e nem sei se algum dia voltará a andar.

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