Existe uma escrita feminina?

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Existe uma escrita feminina?

Uma análise das possibilidades de uma escrita feminina a partir da teoria e da prática na Literatura

A escrita feminina, como expressão, dificilmente alcançará uma condição final e soberana, pois é um conceito ainda muito discutível. Levando em conta que ela não é restrita exclusivamente à mulher, mas intimamente relacionada a ela, tanto autores homens quanto mulheres podem ter uma poética (dicção e estética próprios) dita feminina. De início, o problema se coloca na definição do ser “mulher”. O que caracterizaria esse signo? A psicanálise, por exemplo, muito se dedicou a essa questão, porém sempre se limitou ao campo do “não”: o feminino é o não masculino (Lacan, no Seminário XX). No contexto da incerteza que rodeia a concepção de escrita feminina, há outro ponto que fomenta a imprecisão desse termo: a relação recente entre a mulher e a pena. Não por falta de interesse, nem por menos capacidade, a novidade da mulher como escritora se deve às condições a que o gênero feminino foi submetido desde os primórdios: “e as mulheres sempre foram pobres, não apenas nos últimos duzentos anos, mas desde o começo dos tempos” (WOOLF, 1985, p.141).

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Lucia Castello Branco, no seu O Que É Escrita Feminina, estabelece uma associação do corpo com essa literatura: “e essa trajetória, (…) é certamente atravessada pelo corpo, já que o corpo está sempre aí, ‘esbarrando’ no real e apontando caminhos e descaminhos.” (BRANCO, 1991, p.20). E a “esbarrada” vem por duas direções: o conteúdo e a forma. A temática literária perpassando o corpo físico é um reflexo da confinação da mulher ao espaço privado, que aviva sua intimidade consigo mesma. Porém, ao mesmo tempo, devemos levar em consideração a histórica repressão sexual sobre as mulheres, já que, por muito tempo, o paradigma foi a virgindade, a pureza e o recato. Portanto, essa intimidade do corpo versus o seu repúdio resulta em um ganho estético interessante: a atmosfera conquistada é bastante erótica. Além da recorrência de signos corpóreos, como “mão” ou “boca”, a escrita feminina é sensorialmente apelativa. Criando uma cadência e um ritmo intrínsecos, ela busca envolver o leitor em um prazer estético único – o gozo da linguagem.

A poética de inúmeras escritoras toca intensamente nas questões do corpo. Fibrilações, de Adélia Prado, por exemplo:

Tanto faz
funeral ou festim
tudo é desejo
o que percute em mim.
Ó coração incansável à ressonância das coisas,
amo, te amo, te amo,
assim triste, ó mundo,
ó homem tão belo que me paralisa.
Te amo, te amo.
E uma língua só,
um só ouvido, não absoluto.
Te amo.
Certa erva do campo tem as folhas ásperas
recobertas de pelos,
te amo, digo desesperada
de que outra palavra venha em meu socorro.
A relva estremece,
o amor para ela é aragem.

(in: O Pelicano) 

O poema, semanticamente, se constrói por meio dos signos corpóreos (coração, língua, ouvido) e as palavras que têm estreita ligação com o corpo (desejo, homem, pelos, estremece). O seu passo, uma sequência de fibrilações, obedece ao ritmo do amor e do coração, sendo marcado pela repetição de “te amo”. Regida pelas significações e descompassos do corpo, Adélia Prado concebe um eu-lírico coerente com o texto de Lucia:

(…) o que a escrita feminina busca é, em última instância, a inserção do corpo no discurso. Ao lermos o texto feminino, sempre esbarramos nesse corpo do narrador, ali exposto, a nos dizer que não é apenas um signo, uma palavra, uma representação, mas o que antecede ao signo, à palavra, à representação (BRANCO, 1991, p.22).

A análise da escrita feminina sobre a perspectiva do corpo é só mais uma das facetas do espectro que envolve essa produção literária. Afinal, “(…) a mulher e a ficção, no que me diz respeito, permanecem como problemas não solucionados” (WOOLF, 1985, p.8).

***

Texto feito em colaboração com as amigas Nathália Valle, Alice Laterza; e o amigo Rodrigo Noronha.

REFERÊNCIAS

WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BRANCO, Lucia Castello. O Que É Escrita Feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991.

PRADO, Adélia. O Pelicano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

LACAN, Jacques. O Seminário: livro 20 – mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

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