Germinal, de Émile Zola: uns toques históricos e apreciações estéticas

0
Germinal, de Émile Zola: uns toques históricos e apreciações estéticas
Émile Zola

Germinal, livro de Émile Zola construído a partir de criação ficcional e análise de campo, é analisado em seu recorte, seus acertos e enganos 

Autor de Germinal
Émile Zola

Em 1885, o francês Émile Zola (1840-1902) lançou o romance naturalista Germinal, depois de um esforço gigantesco para sua elaboração. A obra relata a realidade de uma fração específica da classe trabalhadora francesa: aquela que se sujeita à atividade da mineração. Como base para escrever seu livro, o escritor não se satisfez apenas com a busca de documentos sobre a realidade dos mineiros.

Ele acrescentou uma árdua pesquisa de campo que consistiu em ir – ele próprio – passar meses entre operários de minas francesas. Morou em cortiços e desceu ao fundo dos poços onde vislumbrou diretamente o trabalho naquela realidade insalubre. Também bebeu cerveja e genebra em botequins, convivendo com mulheres e homens muito distantes dos ambientes acadêmicos e da atmosfera literária burguesa.

A essa vivência dentro do meio que buscava retratar, Zola uniu um trabalho de pesquisa teórica. Daí submeteu toda essa matéria-prima a uma minuciosa elaboração literária – portanto também imaginativa.

Assim nasceu a saga de Etiene (o desempregado tornado mineiro e, em seguida, líder grevista), de Boa-Morte (o operário com pulmões enegrecidos, que pena cinquenta anos nas minas, sempre escapando de mortes violentas) e da franzina Catherine, que enfrenta a rigidez das rochas (e do assédio masculino) no trabalho, mesmo ainda impúbere.

Em Germinal não se falseia o cotidiano do povo, idealizando-o. Apesar do caráter social da obra, nela não se canonizam os proletários nem se demonizam os patrões. Mas é claro, também, que Zola não poderia relativizar em demasia esse confronto de interesses, sugerindo que ambas as classes têm o mesmo quinhão de alegrias e sofrimentos, pois isso seria mascarar a realidade. E a realidade é que a classe trabalhadora das minas sofre muito, mas muito mesmo. E os romancistas de qualidades não podem desviar seu olhar de nenhum aspecto da existência, seja alegre ou triste.

Realmente Zola mostra a que veio, diferindo totalmente de literatices açucaradas, romanticoides, piegas; abre espaço para a vida humana real, também com suas dores e misérias. Porém, mesmo com tantos méritos, o livro se deixa levar por algumas visões rasas e estigmas comumente difundidos na sociedade por ignorância ou má-fé.

Germinal e o anarquismo: o que aconteceu?

Nesse aspecto, o que mais salta aos olhos é o fato de o grande romancista francês ter feito uma abordagem tão estereotipada do anarquismo através do personagem Suvarin. A profissão de fé desse personagem (a crença numa destruição completa que trouxesse alguma remissão para os seres humanos) não é pregada pelo anarquismo, que é, aliás, um ideário profundamente antidogmático.

É fato que, tratando-se de uma obra literária, o autor não fica escravo de uma representação da realidade e, portanto, em tese, não se obrigaria a mostrar a verdade histórica. Mas deve-se considerar o seguinte: não estamos diante dum romance de fantasia, ficção científica ou realismo fantástico, estamos – isto sim – num campo muitíssimo distantes dessas estéticas. Aí é que reside o principal problema: a falha estrutural da narrativa em relação a proposta realista/naturalista escolhida pelo escritor nesse livro.

É extremamente problemático que o personagem Suvarin faça referências elogiosas a uma figura histórica real: o revolucionário russo Mikhail Aleksandrovich Bakunin (1814-1876), sendo que as ideias deste em nada se parecem com as do personagem de Zola.

Zola, Bakunin, Germinal e falácias

Bakunin era entusiasta da Associação Internacional dos Trabalhadores (fundada em 1864), ao contrário de Suvarin, que a chamava de “bobagem”. Era coletivista e federalista, por isso defendeu na AIT que seus núcleos regionais fossem autônomos e não submetidos à autoridade de algum comitê central. Sempre propugnou que a Internacional fosse uma organização social e não política, e que dentro dela houvesse espaço para diferentes pensamentos filosóficos, religiosos ou políticos.

Acabou expulso justamente por isso, já que havia quem quisesse transformar a AIT numa mera correia de transmissão de interesses partidários, notadamente Karl Marx (1818-1883) e seus seguidores no seio da organização.

As práticas e discursos de Suvarin, menosprezando a autonomia do povo e até nutrindo-lhe ódio, contradizem completamente o real pensamento bakuniniano.

Não se sabe exatamente o que levou Zola a esse equívoco histórico, mas a associação que se faz entre anarquismo e terrorismo geralmente se baseia na falsa ideia de que Bakunin teria escrito junto com Sergei Nechaiev, em 1869, um “Catecismo Revolucionário” onde se pregava que os fins justificam os meios.

GerminalPorém esse texto chamado Regras nas quais Deve se Inspirar o Revolucionário (erradamente conhecido como “Catecismo Revolucionário”) foi escrito individualmente por Nechaiev, que não era anarquista. Bakunin escreveu, isto sim, um livreto chamado Catecismo Revolucionário em 1865 onde dizia que: “Sem nenhuma espoliação, mas pelos esforços e forças econômicas das associações operárias, o capital e os instrumentos de trabalho se tornarão propriedade dos que os utilizarem para a produção de riquezas pelo seu próprio trabalho”.

E pregava: “Abolição absoluta de todas as penas degradantes e cruéis, das punições corporais e da pena de morte (…), de todas as penas por tempo indeterminado ou muito longo que não deixem nenhuma esperança, nenhuma possibilidade real de reabilitação…”. Já o “Catecismo” do autoritário Nechaiev – duramente criticado por Bakunin – pregava abertamente o assassinato. Em carta de Bakunin a Nechaiev (Locarno, 2 de julho de 1870) lemos: “… seu principal, seu imenso erro é estar seduzido pelo sistema de Loyola e de Machiavel; o primeiro se propunha a reduzir à escravidão toda a humanidade e o outro a criar um Estado forte reforçando a submissão do povo”.

Émile Zola não foi o único escritor a reproduzir falaciosos lugares-comuns acerca de práticas de alguma forma ligadas ao anarquismo. Ernest Hemingway (1899-1961) também veio a fazer algo parecido no romance Por Quem os Sinos Dobram, ao caracterizar como bêbados os integrantes das milícias libertárias que combatiam o Fascismo na Espanha revolucionária entre 1936 e 39. Bons romancistas, como se vê, também podem se deixar levar por preconceitos sociais.

No caso específico de Germinal, as impropriedades se resumem ao inverossímil Suvarin. A personagem Catherine, por exemplo, está perfeita. Ela seria uma espécie de “mocinha da trama”, mas hiper-real, palpável, sem idealizações. Com sua sexualidade imatura e animalizada ela se constitui num contraponto riquíssimo às virgens diáfanas do Romantismo.

A personagem “filha do Mouque” também se distancia de estereótipos, pois sua prática sexual intensa, com variados parceiros, não é mostrada como contraditória em relação à solidariedade de classe e ao altruísmo, que ela demonstra ao longo do livro.

As descrições são bastante competentes. Vemos claustrofóbicas galerias das minas de carvão, vagonetes precários, casebres insalubres, tascas sórdidas, ruelas esburacadas e todo um meio operário de privações e sofrimentos. Daí saltamos, em outros capítulos, para uma atmosfera de luxo em que vivem os proprietários das minas.

Do contraste entre as duas realidades, vem à mente do leitor a consciência das injustiças do sistema capitalista, mas sem que isso se dê dum modo panfletário ou antinatural. O romance levanta as questões sociais, deixando que os receptores dessa obra de arte (re) elaborem livremente seus conceitos acerca das desigualdades do mundo. E tudo isso se dá sem didatismos e – na maior parte das vezes – sem estereótipos.

 

Não há posts para exibir