

Na década de 30, na 2ª fase do Modernismo brasileiro, surge o romance regionalista nordestino, caracterizado como uma literatura social, pois discute as realidades socioculturais de determinadas localidades, sem perder o caráter ficcional universal. Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é um dos romances inaugurais desse moderno estilo brasileiro regionalista.
Escrito em 1938, Vidas Secas é o único livro de Graciliano Ramos escrito em 3ª pessoa e, sem dúvidas, o mais voltado para o drama social que angustia sua região, o nordeste brasileiro. O romance, em um curto espaço de tempo, narra o cotidiano de uma família de retirantes que tenta fugir da seca do sertão nordestino.
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No contexto de sofrimento e de injustiças são apresentados os personagens. Todos revelados fisicamente derrotados pelo sol e moralmente humilhados pelas desigualdades sociais. Devido à falta de expectativa de vida, os sertanejos se submetem a uma rotina em busca de saída da miséria. A família é composta pelo pai Fabiano, a mãe Sinhá Vitória, os filhos mais velho e mais novo e a cachorra Baleia. Fabiano, ao consolidar-se como vaqueiro de uma fazenda abandonada, desfruta de um período curto de estabilidade, mais tarde acaba por se frustrar e ver seus sonhos se acabando.
A família representa os tantos outros humanos que têm sido reduzidos pela hostilidade da natureza e pela injustiça da sociedade. A narrativa passa a limpo a luta de tantos outros sertanejos, não só contra a força da natureza, mas também a luta contra a estrutura social instaurada a partir do poder econômico e político.
Na obra, a animalização do ser humano (zoomorfização) é notória, principalmente, no personagem Fabiano e a humanização do animal (antropomorfização) na cachorra Baleia que, embora sendo um animal, é como um membro da família e apresenta as sensações mais humanas de toda a narrativa.
Tanto a animalização, quanto a humanização são evidentes na obra em diversos aspectos: pela influência do espaço, do meio social, das condições de vida, pelo tempo, sobretudo o tempo psicológico – que marca as características humanas da cachorra Baleia –, e pela linguagem dos sertanejos.

O aspecto que mais contribui para a animalização de Fabiano é o espaço: o sertão nordestino, que é como um personagem dentro da obra. O sertão é descrito com precisão, a paisagem é seca e silenciosa. A existência miserável dos sertanejos é consequência das condições em que eles vivem, do determinismo do espaço. Os sertanejos são obrigados ao meio natural, isto é, a seca. Fabiano, juntamente com a família, rasteja pelo sertão à procura de sobrevivência, arrasta-se em busca da condição mínima de vida. Há outro aspecto importante, o meio social em que se encontram os retirantes: há falta de recursos básicos e há violência da exploração por parte daqueles que têm poderes – como os personagens Dono das terras e o Soldado amarelo.
A linguagem do romance é direta e seca, como a natureza do sertão. A incapacidade linguística de comunicação dos retirantes é representada no personagem Fabiano. Ele se comunica por meio de ruídos e frases incoerentes, pois não consegue elaborar frases coesas e coerentes,
No romance, os personagens humanos são apresentados de maneira bruta e áspera, vítimas da atmosfera caracterizada pela seca que absorve a humanidade dos sertanejos, como se fossem camaleões que se adaptam ao ambiente. A cachorra Baleia, embora sendo um animal, apresenta grandes sensações humanas. Provê alegrias e tristezas, vida e morte. Cabe a ela o momento mais dramático da narrativa. Já aos demais personagens, cabem a sobrevivência na seca do sertão nordestino.
Fabiano, sobretudo, é o tempo todo apresentado como um bicho, aliás, o próprio se julga como um, “Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.” e logo depois, como se tivesse medo de que alguém tivesse ouvido, “ – Você é um bicho, Fabiano.” e em seguida reafirma “ – Um bicho, Fabiano” (RAMOS, 1992, p. 18). Embora Fabiano tenha se tornado um vaqueiro, isso não exclui a sua condição de animal, pois a posição é apenas provisória e um tanto ilusória. Veja o trecho a seguir que evidencia que Fabiano possui características e costumes como os dos animais:
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 1992, p. 20)
O sertanejo tinha grande dificuldade para falar e argumentar. Balbuciava poucas coisas, palavras sem significação, suas falas se assemelham aos grunhidos de animais. Pela falta de habilidade com a fala, dispara, em vários momentos, apenas “Ah!” (grunhido). Seus “barulhos” são reflexos claros de animalização. E devido ao fato de estar sempre à sombra do pai, o filho mais velho herda a mesma inabilidade com a fala. Em outro momento, Sinhá Vitória vendo-se sem perspectivas e chorando, reclama da vida miserável que leva e se questiona sobre até que ponto é viável aquela vida, aquela vida de bicho.

A Baleia, diferente de seus donos, apresenta-se em um papel humano. No capítulo intitulado Baleia, onde é narrada a sua morte, o narrador atribui várias características humanas à cachorra, uma série de descrições que, geralmente, não são atribuídas aos animais.
Em primeiro momento o narrador declara que “a cachorra espiou o dono desconfiada” (RAMOS, 1992, p. 87), como se ela estivesse prevendo que seria sacrificada. Após levar o tiro, Baleia “andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo” (RAMOS, 1992, p. 88). Um pouco antes de morrer, ela reflete sobre o que estava acontecendo e suas últimas lembranças são apresentadas pelo narrador.
São atribuídos os processos mentais de afeição e de desejo a Baleia. Ela aprova ações ao movimentar sua cauda, desaprova ações ao se mostrar séria e não gosta de expansões violentas. Enfastiava-se com os barulhos de Fabiano, às vezes sentia vontade de mordê-lo, às vezes sentia vontade de demonstrar seu afeto pelos donos e vontade de latir como um meio de expressar oposição sobre as ações deles. Também são atribuídos, a ela, processos mentais de cognição e percepção , tais como: “acreditava”, “admitia”, “achava”, “estranhou”, “não sabia”, “sentiu”, “percebeu” e “franziu”.
Em toda a narrativa, Baleia é apresentada como um membro importante da família, não é vista como animal, pelo contrário: “Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras”. (RAMOS, 1992, p. 85, 86)
Por fim, veja mais um trecho do momento da morte da cachorra Baleia, no qual são atribuídas mais características humanas a ela:
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. (RAMOS, 1992, p. 89)
A cachorra baleia, ao longo de todo o romance, sonha, sente alegria, tristeza e dor. Como já dito antes, cabe a ela o momento mais dramático da narrativa, ou seja, o momento de sua própria morte. Baleia tem suas desconfianças e vontades. Mostra-se, inclusive, responsável pela caça que alimentava os familiares, como se tivesse obrigação de sustentá-los durante o período de miséria. Em contraponto, Fabiano não se dava bem com os homens, tinha dificuldade de se comunicar, pouco demonstrava sentimentos e raciocínio, um homem bruto e seco, assim como clima do nordeste. Ele e sua família se ocupam do papel de sertanejos que fogem da seca nordestina brasileira, que vivem como bichos, que lutam contra as forças da natureza em busca da sobrevivência no sertão e que, ainda sim, sentem a miséria na pele.
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Referências:
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
CANDIDO, Antônio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1992.
MACHADO, Duda. De volta a Vidas secas (ao encontro de Fabiano). Revista USP. São Paulo, nº 58, junho/agosto 2003.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 63ª ed. São Paulo: Record, 1992.
RIBEIRO, Emílio Soares. A humanização da cachorra Baleia vs. a animalização de Fabiano: uma análise descritiva da tradução do livro Vidas Secas para o cinema. Revista Eletrônica Darandina, UFJF, nº 2, sem ano.
ROSA, Miriam Debieux. Uma escuta psicanalítica das vidas secas. Revista de Psicanálise Textura. São Paulo, nº 2, 2002.
SANTOS, Camila Brito dos. A humanização da personagem Baleia em Vidas Secas: uma abordagem sistêmico-funcional. – Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.