Não existiu apenas um Jean Cocteau, mas vários: poeta, dramaturgo, crítico de arte, cineasta, artista plástico, e o autor de Dificuldade do ser
É impossível falar de Jean Cocteau (1889-1963) sem descrever a sua habilidade de se multiplicar. Não existiu um Cocteau, mas vários: temos o poeta, que reclamava possuir poucos leitores; o dramaturgo, responsável por A voz humana, que se tornou um marco teatral ao concentrar o drama inteiro no monólogo vivido por uma mulher em um cenário enxuto; o crítico de arte, acostumado a detectar as características principais de uma obra e identificar o genuinamente novo; o artista plástico, que transformou capelas abandonadas na França em obras de arte; o cineasta, responsável por filmes que marcaram a linguagem do cinema, como Sangue de um Poeta (1930) e Orfeu (1950); temos, ainda, o ser humano, que viveu de maneira intensa no meio cultural da Europa, estabelecendo amizades com o poeta Guillaume Apollinaire, o dramaturgo Jean Genet e o ator Charles Chaplin , entre outros.
Todos os Cocteaus sentaram-se juntos à mesa de um hotel, localizado em uma montanha repleta de neve, e escreveram as suas memórias, as quais acabam condensadas no livro A dificuldade de ser. O momento não podia ser mais delicado. Logo nas páginas iniciais, Jean Cocteau confessa que filmar A Bela e a Fera deixou-lhe em péssimas condições de saúde: ainda recuperando-se de uma insolação sofrida nos sets de filmagem, fragilizado, seguindo ordens médicas ele se isola no quarto do hotel e decide fazer um apanhado sobre a sua vida. Até mesmo homens múltiplos precisam de repouso do fardo de carregar inúmeras vontades no seu interior, e a dificuldade de ser Cocteau também é enorme.
Apesar de ser considerado uma autobiografia, A dificuldade de ser escapa dessa definição engessada. Aproxima-se mais da ideia de uma sucessão de pensamentos filosóficos na forma de pequenos capítulos, estruturados em torno das memórias de Cocteau. Não é à toa que, em alguns momentos do livro, o escritor francês faz referências ao filósofo Michel de Montaigne (1533-1592), considerado o criador do ensaio. Os capítulos são divididos fora da ordem cronológica dos eventos, e ligados ao assunto expresso no título. Assim, temos capítulos como Das casas assombradas, Da amizade, Do sonho, De Guillaume Apollinaire. Cada um deles serve de pretexto para o artista francês dissertar brevemente sobre o tema ou pessoa, tomando por base alguma vivência sua para, a seguir, aprofundar a ideia.
No entanto, mesmo desejando escrever ensaios sobre todos os fatos que lhe sucederam e expor suas reflexões ao melhor estilo de Montaigne, Cocteau não consegue a abrangência do seu modelo literário. Ao contrário do filósofo medieval, percebe-se no escritor contemporâneo um relativo medo de expor demais a sua privacidade, o que não deixa de ser algo atípico para um artista multitarefa que se destacou justamente por não temer a exposição pública. Montaigne não possuía medo da reação do público, e isso o levou a escrever sobre qualquer assunto, desde a periodicidade das suas idas ao banheiro e o formato esdrúxulo das suas fezes até longos textos sobre amizade e sobre a morte. É possível ver o homem Montaigne – com seus medos, fraquezas e pequenas glórias – por trás de cada texto de Os ensaios, enquanto que, em A dificuldade do ser, percebemos não o homem Cocteau, mas o escritor, que depura a ideia pelo filtro social e usa construções poéticas revelando somente parte dos seus pensamentos mais íntimos. Não há, assim, uma entrega absoluta à verdade dos acontecimentos, mas uma rendição parcial.
Longe de ser um demérito, é uma característica que acaba por destacar a qualidade da obra. Cocteau tenta, mas não consegue ser Montaigne, e tal luta com a sombra da influência permite que ele chegue a uma voz própria, distinta do seu modelo literário e, por isso mesmo, original. Nesse sentido, A dificuldade do ser revela-se uma obra muito bem escrita. Cada frase foi arduamente trabalhada para gerar o máximo de efeito sobre um eventual leitor, o qual, além de conhecer alguns prismas do personagem assumido pelo homem Cocteau, pode igualmente mergulhar nos seus pensamentos e tirar algumas lições para a própria vida.
É possível encontrar episódios cômicos, pequenas histórias e momentos de tristeza, tudo isso ao lado de fartas doses de reflexão. Por exemplo, no capítulo dedicado à amizade, Cocteau afirma: “O amor é feito de espasmos breves. Se esses espasmos nos decepcionarem, o amor morre. É muito raro que ele resista à experiência e se torne amizade. A amizade entre homem e mulher é delicada, é também um tipo de amor. O ciúme se camufla ali. A amizade é um espasmo tranquilo. Sem avareza. A felicidade de um amigo nos encanta. Ela nos acrescenta. Não tira nada. Se a amizade se ofender, não é amizade. É um amor que se esconde.” Uma prosa calma e envolvente, com pensamentos encadeados que levam o leitor a seguir os meandros da visão de mundo do autor. A utilização de frases curtas assemelha-se a uma série de aforismos. Entretanto, não muito distante, Cocteau é capaz de fazer uma frase repleta de imagens poéticas se alongar por quatro ou cinco linhas sem perder o rumo do raciocínio.
Da mesma forma, o escritor francês é um exímio contador de histórias. Ao falar de Nijinski, ele menciona o constante mau humor do outro: “Antes da estreia do Fauno, nas ceias do restaurante Larue, ele nos surpreendeu, durante vários dias, com movimentos de cabeça que lembravam um torcicolo. Diaghilev e Bakst estavam preocupados e o interrogaram sem obter nenhuma resposta. Soubemos, em seguida, que ele treinava para o peso dos chifres. Eu citaria mil exemplos dessa pesquisa perpétua que o tornava irritadiço e mal-humorado.” Por ter convivido com alguns dos maiores artistas da sua época, o livro está recheado de histórias, algo que suaviza e exemplifica os temas tratados em cada capítulo.
No entanto, existe um tema que adeja sobre todos os ensaios, uma sombra que turva a vida de Cocteau: a decadência. O artista sabe que o seu tempo se aproxima do final, e se ressente de ter tal percepção. Reclama do corpo que começa a lhe falhar, da feiura progressiva, dos lapsos de memória, do passado que não é mais o mesmo, da infância e da maturidade que cederam espaço para o avançar progressivo da velhice. Cocteau recusa-se a envelhecer, por mais inglória que seja tal batalha, e o silêncio que se impôs no quarto do hotel isolado para escrever A dificuldade de ser é sufocante. Ele é um artista e, como tal, admite só se sentir vivo quando está conversando com outros indivíduos. O silêncio da escrita faz com que ele mergulhe profundamente na noção de que a morte o espreita, mais próxima do que jamais esteve, e não existirá maneira de enganá-la. Mais do que temer o fim físico, ele se sente desanimado ao perceber a decadência imiscuindo-se no seu cotidiano, como se fossem ervas daninhas a perturbar um templo. Cocteau não se importa de morrer, mas entristece e reclama da sua constante degradação, um homem tendo a sua natureza erodida pelas ondas do Deus Tempo – como todos os outros, sem nada de especial.
Jean Cocteau viveu mais 17 anos depois de concluir A dificuldade de ser. Se já se sentia decadente em 1946, é possível que tal sensação tenha se ampliado nos anos posteriores. Em um posfácio à obra, escrito depois do retorno à sociedade, Cocteau manifesta o desconforto e a estranheza com a obra produzida: “Aí estás, curado e sozinho, no inverno, de volta a esta casa grande e vazia, onde escrevias este livro, cercado de uma família. Escrevias este livro, cujas primeiras provas tu corriges e das quais não compreendes mais quase nada.” O autor próprio não reconhece o amargor das frases destiladas pelo silêncio do isolamento. A obra não é mais parte dele, mas uma cobra recheada de veneno, apta a espalhar seus medos por entre os leitores que dela se aproximarem.
Ao final do posfácio, uma admoestação para si mesmo: “Pois bem, vira-te, intrépido! Intrépido e estúpido, avança. Arrisca-te a ser até o fim.” É o desafio que Cocteau faz para a decadência: se ela existe e é inexorável, venha enfrentá-lo. O artista jamais deixará de ser ele mesmo, pois se existe dificuldade de ser, é igualmente difícil negar-se a ser.
A dificuldade do ser, de Jean Cocteau
Tradução: Wellington Júnio Costa
Editora Autêntica
208 págs.