Na peça Jim, o público sente na pele a atmosfera da década de 60 – o furor da contracultura, a contestação, a rebeldia, o rock como estilo de vida
“Os três pilares da humanidade são: ética, política e estética. Quando a ética e a política vão mal, precisamos nos concentrar na estética. É a arte quem nos salva da decadência total.” Foi assim que Eriberto Leão, após um espetáculo de tirar o fôlego, se despediu da plateia na peça Jim. Pautando-se em uma introspecção de um fluxo de consciência, o musical é narrado por João Mota, um fã brasiliense de The Doors, obcecado pela banda e seu vocalista. A trama se desenrola a partir de uma crise suicida de João, que decide jogar roleta russa com Jim Morrison, no meio de um delírio. Além de Eriberto, que interpreta o narrador, contamos com a atuação de Renata Guida, que encarna o feminino de várias formas. O cenário é vazio, contando apenas com a presença de um piano-caixão, com os dizeres: “JIM MORRISON 1943 – 1971”.
O ganho estético mais interessante da peça é a fragmentação do eu, já que podemos ver várias faces de João Mota: além dele próprio, aparece Jim Morrison, Mr. Mojo Risin e a mulher representando seu lado feminino. Marcello Duarte Mathias, em um ensaio sobre autobiografias e diários, diz que “(…) aquele que desejaríamos ter sido é tão ou mais importante na definição do que somos do que aquele que na realidade acabamos por ser.” (MATHIAS, 1997, p.42); e isso casa perfeitamente com a ideia de Mr. Mojo Risin, nome que aparece na letra de “LA Woman”. Esse desdobramento de João Mota seria uma espécie de alter ego, aquela personalidade que ele não conseguiu ser. Além de ser um anagrama de Jim Morrison, ‘mojo’ remete à sexualidade, e o sobrenome brinca com ‘rising’ (em inglês, insurreição). A personagem de Renata também é singular, se tornando quase uma voz da razão dentro da cabeça do narrador. A simetria entre os dois deixa clara essa extensão do ‘eu’ – quando ele tira a blusa, ela também tira. As cenas em que os dois usam o corpo são belíssimas, e brincam com a dança e a música.
Sobre essa pluralidade do eu, há uma intertextualidade interessante com O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse: o conflito milenar entre o homem e o lobo, o civilizado e o bárbaro, a racionalidade e a paixão. As referências literárias não param por aí, indo de Shakespeare, numa invocação do nosso perturbado príncipe da Dinamarca; passando por Rimbaud e o exílio africano; até William Blake e a origem do nome “The Doors”. Morrison era um grande leitor, e, de acordo com a lenda, batizou a banda a partir dessa citação de Blake: “Quando as portas da percepção forem abertas, veremos tudo como realmente é: infinito”.
A sobreposição de correntes (a contracultura da época dos Doors X diálogos literários com poéticas mais antigas), esboçando um contraste formal, provoca um efeito de grande desempenho dramático. Essa coexistência de tempos diversos é uma característica da nossa noção caótica de contemporâneo, que procura sempre resgatar o passado e restaurá-lo no presente. Esse é também o anseio de João, nascido 49 dias depois da morte do ídolo, crê que está com ele, envolvido em um jogo fatal.
Embalado no ritmo dos Doors, já que Eriberto nos presenteia com algumas músicas da banda ao vivo, o público sente na pele a atmosfera da década de 60 – o furor da contracultura, a contestação, a rebeldia, o rock como estilo de vida. Essa cadência do musical é muito bem estruturada, seguindo o passo alcoólico desregrado de Jim Morrison. Em certo momento, João postula: “Sem álcool, não há poesia.” E toda a apresentação segue essa linha musicada, do ritmo ébrio, como se o torpor etílico fosse inserido na poética da peça. É possível fazer uma relação entre essa máxima e a proposta formal de Jim: uma vez que ele buscava abrir as portas da percepção, encontrava na embriaguez uma forma de atingir o prazer ético, político e estético do infinito.
Referências:
MATHIAS, Marcello Duarte. Autobiografias e diários. Colóquios Letras. Lisboa, 1997.