O orgulho de ser amadora, a ética do não entender e outros mistérios em “O ovo e a galinha”, de Clarice Lispector
Cem anos de Clarice
Esta coluna é parte das celebrações do Homo Literatus ao centenário de nascimento de Clarice Lispector, comemorado em 2020.
A cada texto, partiremos de uma emoção explorada pela autora em alguma de suas obras – como o medo, a raiva, o amor –, estabelecendo paralelos entre o sentimento em questão, sua obra e sua vida.
Orgulho de ser amadora
Em 1977, dois meses antes de sua morte, Clarice Lispector concedeu ao programa “Panorama”, da TV Cultura, aquela que seria sua única entrevista televisionada. Na entrevista, Clarice responde àquelas curiosidades comuns sobre a vida e o ofício do escritor, ao que parece, com alguma impaciência, confundida a uma estranha serenidade. Logo de cara, ao ser perguntada sobre o momento em que decidira “assumir a carreira de escritora”, Clarice põe o script jornalístico a perder. Mal Lerner (o entrevistador) termina a pergunta, ela dispara, enérgica, como se dissesse o óbvio:
“Eu nunca assumi. Eu não sou uma profissional. Só escrevo quando quero. Eu sou uma amadora, e faço questão de continuar a ser amadora.”
Não surpreende que Clarice se sentisse “chovendo no molhado”, já que toda a sua vivência literária foi um manifesto – ou assim ela o quis – pelo amadorismo.
Sim, Clarice foi uma amadora. A tempo de salvar minha cabeça, explico: amadora porque fez de sua escrita um exercício de amor. A combinação dos dois sentidos do termo, o original (aquele que ama) e o assumido (o não profissional, ou diletante, bastante usado com valor pejorativo) pode esclarecer a recusa de Clarice ao título de escritora. Afinal, ela não queria ter com a literatura um contrato, mas uma relação.
Por essa razão, natural que Clarice tenha cultivado, acima de tudo, a liberdade de escrever, de pertencer à escrita pelo desejo espontâneo – pelo amor, que é senão a própria expressão da liberdade.
Avessa, portanto, a fazer da literatura um meio de vida, Clarice foi uma “loba solitária” e pouco tomou parte nas rodas literárias (o que não a impediu, é claro, de nutrir amizades e intercâmbios verdadeiros com outros escritores, entre os quais se destacam Erico Veríssimo e Mário Cardoso). Da literatura, o que lhe interessava não era a instituição, o livro, a coroação, o lugar de fala do autor, muito menos o entendimento. Da literatura – como da vida, porque Clarice não as dividia –, o que lhe interessava era o mistério.
A ética do não entender em “O ovo e a galinha”
Toda a obra clariciana gira em torno de uma ética do não entender, apelando também a um outro tipo de entendedor. Em um texto em particular, digamos que ela a “explique”: “O ovo e a galinha”.
Originalmente publicado em 1964, na coletânea de contos A legião estrangeira, o texto retorna como crônica em 1969, como “Atualidade do ovo e da galinha”, publicado em três partes, na coluna semanal mantida por Clarice no Jornal do Brasil (a qual rendeu a reunião póstuma A descoberta do mundo, de 1984). Em Felicidade clandestina, de 1971, ele também dá a graça. Em 1973, mais uma vez, em A imitação da rosa. E em 1975, lá está ele de novo, como comunicação apresentada por Clarice na Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria (bruxas, isso mesmo!), em Bogotá.
A insistência de “O ovo e a galinha”, nessa última circunstância, chama a atenção, até mais do que nas outras. Pelo menos, é dela que quero falar. Por que será que Clarice, tão tímida e desconectada do território oficial da literatura, o escolheria para um congresso que ligava atividades aparentemente sem qualquer interseção – literatura e bruxaria?
A afeição de Clarice por esse texto, assim como a intuída importância que ele teria como síntese de sua relação com a literatura – nas bases de um “antipensamento” –, tem tudo a ver com essa escolha, e com o aceite de Clarice em participar do evento.
Nossa melhor pista é o próprio “O ovo e a galinha”, que, segundo a escritora, era para ela mesma um de seus textos mais enigmáticos. Embora ele tenha circulado como conto e crônica, poderia também ser chamado de um ensaio filosófico às avessas, já que não quer responder nada. E além: ele coloca as perguntas no lugar das respostas.
Um mistério que se quer mistério
Muita calma, nessa hora, meus caros leitores e leitoras. “O ovo e a galinha”, como tudo no reino de Clarice, é um mistério delicado. Um mistério que se quer mistério. Por isso, é preciso entrar nele com respeito, pé ante pé, como naquela brincadeira de equilibrar um ovo numa colher. Porque é preciso não “entornar o silêncio do ovo” (LISPECTOR, 1998, p. 49).
Um chute (no gol?)
Que Clarice reconheça meus sinceros esforços de não transformar o ovo em omelete. Mas aí vai: no meu entender “O ovo e a galinha” é um texto sobre a literatura. Ou melhor, sobre a relação da própria escritora com a literatura, um tipo de relação que, Clarice sabia bem, era para poucos. Nela, consideremos que o ovo é a literatura, e a galinha, o escritor.
No conto-ensaio, o ovo é um objeto perseguido por sucessivas, e inúteis, tentativas de nomeação e definição. Olhado, ele devolve o olhar. O ovo resiste a ser lido, simplesmente porque essa não é a sua natureza, a de coisa visível/inteligível. E, mais, esse não é o seu convite.
O ovo está acostumado à gente que se reúne em torno dele para o colocar de pé com suas razões, teorias, nomes, etiquetas, cores, medidas. Quase todos ignoram, porém, que esse gesto só oferece perigo para eles mesmos. “Enganei o bobo na casca do ovo…”, canta o dito popular! E o ovo permanece inalterado, sereno e branco, contemplando, em silêncio, nossa confusão e desespero crescentes (experiência, aliás, muito apreciada pela escrita clariciana).
O ovo é frágil e inquebrável. O ovo é antigo e inédito. Ele sabe e não sabe que é mistério. Isso a que se chama “ovo” não é mais o ovo, e ainda não é o ovo. O ovo é uma realidade tautológica, circular: o ovo é o ovo. Ele é o que é. Negação de uma essência, de uma nudez a ser encontrada, de uma verdade futura: o ovo é a sua própria revelação.
Uma coisa é certa: “entendê-lo não é o modo de vê-lo” (LISPECTOR, 1998, p. 50). Ou podemos ainda dizer: entendê-lo é o melhor modo de perdê-lo. Porque o ovo está “atrás” do pensamento. O ovo não pode ser esgotado. Amar o ovo é não o possuir, eis a sua condição.
O ovo é o convite da literatura
O convite a um caminho árduo, não no sentido do saber e da certeza, mas, bem ao contrário, da desaprendizagem, da dúvida, do desamparo (por isso, em regra, à beira do abismo).
A literatura é, também ela, uma iniciação, entre o místico e o selvagem. Como toda sabedoria, esta começa com o “esqueça o que você sabe e venha comigo”. Diferente das outras, porém, tal condutora não espera: ou se está pronto ou não. Mas o mais estranho de tudo é que ela só eleja aqueles que, para protegê-la, são capazes de renegá-la.
Este é o convite a que poucos, como Clarice, dizem sim. Um convite extensivo a nós, leitores, mal tolerado pela maioria deles. E isso fica exposto na infinidade de leituras que não suportam – esta é a palavra – o mistério de Clarice, sempre o pintando com análises e até diagnósticos (o ovo, que é, por excelência, branco).
Clarice expõe essa desastrada realidade no próprio conto, como se piscasse o olho para essa nossa compulsão pela compreensão, o que significa, literalmente, colocar alguma coisa dentro de limites. O problema é que o ovo é extremamente sensível a essa ambição, que pune com a deserção.
Ser desertada pelo ovo
Ser desertada pelo ovo é pior destino possível para a galinha (o escritor). A galinha que pensa demais sobre o ovo, que o cultua em um altar, mais cedo que tarde, pode esperar que ele lhe falte. A galinha só é depositária digna do ovo se viver conscientemente ignorante da sua existência, esquecida dele. Porque o escritor não é fim, mas meio; ele não serve ao ser escritor, mas ao ovo, que o ultrapassa, infinitamente. O ovo apenas se confia a suas mãos como um hóspede, em visita (missão?). Como um filho, que nunca será seu.
A galinha, portanto, ela que não conte com o ovo. Se contar, já o perdeu. Para Clarice, eis o mandamento maior da literatura: “não contarás com o ovo.”
Deixando-se morrer em vida, entre um livro e outro, assim Clarice viveu: à espera de renascer; à espera de merecer o retorno do ovo. Como uma dos poucos escolhidos para a tarefa, entre os muitos chamados, assim Clarice viveu: disposta a amar o ovo. A não tê-lo, para ganhar a vida.
Referências
LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha. In: CLARICE LISPECTOR. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 49-59.
LISPECTOR, Clarice. Atualidade do ovo e da galinha (5 de julho de 1969); Atualidade do ovo e da galinha (II; 12 de julho de 1969); Atualidade do ovo e da galinha (III; 19 de julho de 1969). In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LERNER, Júlio. Panorama. Entrevistada: Clarice Lispector. TV Cultura, São Paulo, 1 jan. 1977. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 13 nov. 2020.