O que aproxima Simone de Beauvoir e Paulina Chiziane
O avanço da idade, a proximidade da velhice e a consciência de si no outro, numa relação que não mais espelha o sonho realizado de um casamento feliz com um marido fiel. Com esses temas aproximamos a moçambicana Paulina Chiziane e a francesa Simone de Beauvoir; não em seus projetos literários e sim na constituição de duas personagens que sob a égide do amor a seus maridos assumiram posturas distintas diante da traição.
A aproximação de Rami do romance Niketche: uma história da poligamia, de Paulina Chiziane, com Monique do conto A mulher desiludida que dá título ao livro de Simone de Beauvoir se dá pelo espelho em que ambas se olham: a idade. Nele a situação refletida é a ausência de seus maridos. Tony, alto funcionário de um Ministério que nunca está em casa, em Niketche, e Maurice, que chega às 3h da madrugada segurando um copo de uísque e em meio a um interrogatório de todo tipo do porquê da hora, desabafa ter uma amante.
Não é só a dor da traição que as une, mas também o reflexo da idade que, ou é a causa, ou a possibilidade dela. Em Rami, sempre afrontada por seu espelho a lhe dizer ser gorda, sem graça e velha. É nele que ela vê a si própria em sua condição coisificada, numa sociedade machista que equilibra de maneira muito tênue a civilidade dos dias modernos com a instituição da poligamia, herança tribal que a silencia porque reflete a condição de todas as outras mulheres essencializando-as. O espelho não é um elemento mágico na narrativa, é a consciência de sua existência sendo forjada na desintegração da identidade de mulher devota, fiel e amada. Já em Monique, sua subjetividade é a lâmina d’água em que se vê menos interessante, porém mais inteligente, sofisticada, atributos que ela tem em grande valor, mas que talvez não seja nada diante da sua rival Noëllie, advogada bem sucedida e mais nova.
As duas trilharam pelo caminho da traição em sentidos opostos. Rami vai ao encontro de cada uma das amantes de seu marido, as enfrenta, bate e apanha e depois se une a elas; oficializa a instituição da poligamia recorrendo às mulheres mais velhas da família, sempre na esperança de que seu Tony algum dia se canse das outras e volte para ela: a primeira, a legítima, a rainha da casa. Monique conhece a outra apenas de longe, nunca teve coragem de encará-la, sua única ação é a de indagar: sobre onde teria errado com Maurice e perguntar a ele quando tudo teria acontecido. Ela busca a verdade para reencontrar a felicidade do casamento.
A direção que ambas tomam são diferentes, todavia, o caminho é sempre o mesmo e elas, por motivos distintos, cedem e compartilham o amor de seus respectivos maridos com as demais postulantes deles. Rami é ensinada pelas rivais e agora irmãs a compartilhar o marido sob o argumento de que se se compartilha a comida por que não haveriam de compartilhar o mesmo homem. Monique é aconselhada por uma amiga a fazer vistas grossas porque seria normal um homem depois de tantos anos de casado querer uma aventura com outra mulher mais jovem.
Se Rami sente o peso da tradição e de seus sentimentos e aceita a poligamia enquanto estratégia para reaver o marido, Monique perturba-se com a falta de certeza do amor de Maurice por ela, com a falta de perspectiva de futuro; e a angústia do nada em que sua vida se tornou a consome e a imobiliza. Nesse sentido, o estado de Monique lembra ao do eu lírico do poema “Discurso” de Cecília Meireles: “… mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho/ e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram. // Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, / mas houve sempre muitas nuvens. / E suicidaram-se os operários de Babel. // Pois aqui estou cantando. // Se nem sei onde estou, / como posso esperar que algum ouvido me escute? // Ah! se eu nem sei quem sou, / como posso esperar que venha alguém gostar de mim?”.
A busca de Rami e Monique em preservar seus casamentos, em retornar a um estado anterior ao da consciência do adultério de seus respectivos maridos não seria mais uma busca da juventude perdida, do que propriamente do amor perdido? Com o avanço da idade e mirando-se no espelho da vida, elas se depararam com a imagem da abdicação de si mesmas em função de outros, acreditaram ser dessa forma a única em que o amor se sustentaria. Talvez o que ambas busquem sejam suas identidades próprias e só não sabem onde as encontrar. E a pergunta de Monique de quando tudo teria acontecido é a pergunta que todos se fazem, é também a pergunta do poema “Retrato”, de Cecília Meireles: “Eu não dei por esta mudança, / tão simples, tão certa, tão fácil: / – Em que espelho ficou perdida / a minha face?”
REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone. A mulher desiludida. Trad. Helena Silveira, Maryan A. Bon Barbosa. – [Ed. Especial]. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. (50 anos).
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história da poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MEIRELES, Cecília. Os melhores poemas de Cecília Meireles/ seleção Maria Fernanda-15ª ed. São Paulo: Global, 2004.