Conhecido por seus romances estranhos, por vezes surreais, Murakami se aproxima do pessimismo kafkaniano em Sono
Qualquer fã de Murakami está preparado (ou assim imagina) para começar um livro do escritor esperando por cenas estranhas. Mesmo o mais realista de seus livros, talvez Norwegian Wood, tem desses momentos, ou pela forma como a história se desenvolve ou pelo jeito que o escritor japonês escreve.
Contudo, Sono (Alguara, 2015), um conto de cem páginas, tem uma peculiaridade, algo de kafkaniano que chega a dar agonia. Podemos dizer até que nem mesmo seu romance Kafka à beira-mar se revela tão semelhante ao estilo praticado por Kafka em seus contos (tal como se pode ver em Um artista da fome, por exemplo).
Sono é o relato, em primeira pessoa, de uma personagem que há dezessete dias não dorme. Se não fosse por este fato, sua vida seria muito comum. É casada com um dentista há menos de uma década e tem um filhinho pequeno, que recém começou a ir à escola. Sua rotina se divide em servir o café da manhã a este pequeno núcleo familiar, ir ao mercado, cozinhar para o marido que vem almoçar em casa, fazer natação à tarde, ler um pouco quando sobra tempo e depois receber sua família novamente, preparando o jantar e indo dormir. No entanto, em uma certa noite, a narradora tem um sonho, acorda e vê um velho em seu quarto – sem dúvida alguma, este é o “momento Murakami” do livro – e sem dar maiores spoilers, é a partir deste encontro que ela deixa de dormir. Esta é a primeira de muitas noites em que vai à cozinha, se serve de conhaque e se propõe a ler algum romance, hábito que havia perdido após casar, ainda que tenha se formado em Letras/Inglês na faculdade. O romance que escolhe é Anna Karenina.
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Preciso quebrar a resenha para acrescentar que, curiosamente, eu também estou lendo este calhamaço do escritor russo Liev Tolstói. E já se tornando perturbador, minha leitura estava estacionada pouco antes de uma cena em que a protagonista do conto do Murakami para e analisa a história, acabando por me dar um spoiler significativo sobre o que aconteceria a seguir.
Nada anormal para quem é leitor de Murakami. Ou melhor, a menor das bizarrices.
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De Anna Karenina, ela passa a outros clássicos russos. Um detalhe importante é que tanto seu marido quanto seu filho têm um sono pesado, de forma que não notam as atividades noturnas dela. A verdade é que o fato de não dormir acaba aumentando sua percepção de mundo, de forma que, em certo ponto, até acredita que pode ser um passo adiante na evolução da humanidade. Contudo, algo de sombrio – que nunca é dito diretamente, apenas percebido pelo leitor – vai surgindo na visão da personagem. Por exemplo, o fato de passar a ver no marido um rosto feio enquanto dorme, tão diferente do homem gentil que é quando acordado.
É aqui que volto ao início, sobre ser o texto mais kafkaniano de Murakami. No decorrer da leitura, não sabemos o que vai acontecer, mas há um tom de desesperança e de angústia que nos aproxima da morte. Vamos minguando junto ao relato, de forma que nos sentimos desesperançados, sem escapatória desta vida mesquinha. Tornamo-nos tão íntimos desta mulher que não dorme, que passamos a sofrer com ela. Ainda que nossa realidade em nada se aproxime da dela, acabamos nos identificando, associando com algo que vivemos.
É desta forma que se sintetiza a experiência de leitura de quem lê Sono, de Haruki Murakami. Uma tristeza necessária.
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