
O fluxo de consciência escondido no “trivial” Mrs. Dalloway

Nascida em Londres, Inglaterra, no ano de 1882, a escritora Virginia Adeline Stephen Woolf tem entre suas mais importantes obras o romance Mrs. Dalloway, que veio a público em 1925.
A história se desenrola num dia do verão londrino de 1923. De início, o leitor é levado a acompanhar os acontecimentos pelo ponto de vista de Clarissa Dalloway, que sai para comprar flores, preparando-se para a festa que dará à noite em sua casa. Mas logo o narrador onisciente varia o enfoque e, embora o texto continue narrado em terceira pessoa, temos acesso aos pensamentos de vários outros personagens.
Lançado cerca de três anos depois do belo e desconcertante Ulysses, do irlandês James Joyce (1882-1941), Mrs. Dalloway não representa uma transgressão tão explícita ao formato romanesco usual. No livro de Virginia Woolf, não há nada parecido, por exemplo, com o monólogo interior da personagem Molly Bloom – o qual, em Ulysses, ocupa umas oitenta páginas mais ou menos, num parágrafo contínuo sem pontuação alguma. Já em Mrs. Dalloway, o experimentalismo não é tão extremo, porém talvez seja mais natural, escapando de eventuais hermetismos.
Se aqui Woolf não foi tão inovadora e marcante quanto Joyce, é possível ver nela uma habilidade maior em nos conduzir pelo pensamento de diferentes personagens, transportar-nos sem que sintamos variações textuais bruscas, que nos soem artificiais, como se uma vontade autoral externa ao texto se intrometesse entre nós e o mundo ficcional apresentado.
Diferentemente do romance joyceano lançado em 1922, em Mrs. Dalloway o texto flui fácil. Mas que ninguém se engane: essa fluidez que parece espontânea foi obtida através de uma muitíssimo bem arquitetada utilização do discurso indireto livre, o qual se insere, no romance, magistralmente intercalado aos acontecimentos simples da história.
Toda a ação da obra se passa num único dia. Entretanto, as horas vividas por Clarissa Dalloway se desdobram em lembranças e pensamentos que as ampliam, demonstrando que a vida não pode ser medida por relógios ou pelas badaladas do Big Ben – o grandioso sino londrino cujo som é ouvido, ao longo da história, por vários personagens. Estes têm suas trajetórias entrelaçadas de maneira sutil, conferindo unidade ao livro.
No romance, deparamo-nos com Septimus Warren Smith, ex-combatente da Primeira Guerra Mundial atormentado pela lembrança de seu colega Evans morto no conflito. Somos apresentados ao drama de sua esposa Lucrezia, que tenta afastá-lo da insanidade que ameaça tragá-lo de vez. Partindo da tensão entre Septimus e a mulher, passamos para os pensamentos de personagens que os veem numa praça. Tais pensamentos nos revelam histórias de outras figuras que vêm a povoar a narrativa. Emerge Sally Seton, antiga amiga de juventude de Clarissa, rebelde e fascinante (com quem veio a trocar um beijo inesquecível). Surge o hipócrita Hugh Whithbread, que beijara Sally à força para “puni-la” por ser a favor do voto feminino. Somos apresentados também ao aventureiro Peter Walsh, antigo pretendente da protagonista, a qual o preterira em favor do convencional Richard Dalloway.
No meio de toda essa teia de relacionamentos, são abordados temas como: morte, homossexualidade, religião, casamento, desigualdade social, loucura. Sem descambar no didático ou panfletário. Mergulhamos – isto sim – em problematizações, reflexões, novas formas de encarar o mundo, enxergando a profundidade das pequenas coisas e a riqueza de cada instante da vida.