A aliança do silêncio

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Talvez o segredo para a felicidade entre casais de artistas seja uma forma de arte pra cada um (ou sobre: Georgia O’Keefe e Alfred Stieglitz)

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Georgia O’Keefe

Artistas… Esses seres especiais, privilegiados, sensíveis e insuportáveis. Pessoas de inteligência e intuição, talento e empenho que, vamos torcer, entendem a ironia dos textos. A convivência entre artistas não pode ser fácil. A vaidade é desenfreada e pode tornar-se verde, roxa, quando a inveja e o ciúme já não conseguem encontrar o disfarce.

Quanto ressentimento carregou Zelda por ter se empenhado tanto e ainda assim ter publicado apenas um romance, vivendo com a metade mais celebrada com casal Fitzgerald? E Sylvia Plath que, com sua mente brilhante, fazendo uso do sarcasmo que a amargura acomoda, diz em entrevista que escritores são a pior espécie de artistas porque são os mais vaidosos? A autora americana chega a comentar nessa entrevista, dada à BBC, que gosta de poetas americanos e não consegue citar um nome na poesia inglesa que possa lhe interessar. Eu me pergunto o que o marido/amante/inimigo Ted Hughes concluiu dessa colocação. Talvez o segredo para a felicidade entre casais de artistas seja uma forma de arte pra cada um. Mas aí, penso em Dora Maar que fotografou Picasso no auge da carreira, no seu momento de maior prestígio e recebeu dele retratos surrealistas que refletiam o ciúme que ela sentia pelo amante. Retratos distorcidos e disformes em que ela já não se reconhecia, a não ser que expressassem loucura.

Recentemente, eu visitei a badalada exposição da Georgia O’Keefe na Tate Modern. A primeira grande mostra dela fora dos Estados Unidos é cheia de previsibilidades. Lá estão as flores das quais eu não gosto muito, mas estão as paisagens, as luzes dos seus territórios localizados no meio do nada. Os traços minimalistas que enaltecem a grandiosidade do espaço, do contorno solto, em movimento inserido na dificuldade que é encontrar o vazio significante. Estavam lá as fotos tiradas pelo amante e depois marido, Alfred Stieglitz. Enquanto eram amantes, Stieglitz fez fotos impressionantes de O’Keefe. São agressivas, expressivas, talvez reflitam o entusiasmo e a paixão dele por ela quando ainda era feita de sonhos e desejos. Encontraram-se quando ele era casado, com uma vida comum. Amaram-se tanto, acreditaram tanto nos dois que Stieglitz deixou a mulher e casou-se com O’Keefe. Foi uma longa e forte parceria. Fico achando que era porque ele fotografava a artista plástica. Sem competição entre eles mesmos, exaltavam o que de mais belo encontravam um no outro.

Este não é um texto que trata de sugestões para manter um casamento entre artistas, já que Maar e Picasso me fizeram fracassar o argumento. E ainda que O’Keefe seja tão celebrada, considerada a mãe do Modernismo americano e tenha tido, feito Picasso, prestígio em vida, não nego que, além das aquarelas das paisagens do Novo México, a vida dela me interessa muito. As flores, menos.

Acho tolo quando referem-se às flores como genitália feminina. Acabam limitando qualquer possibilidade artística além da evocação sexual. Os desenhos e as aquarelas fazem de O’Keefe tão mais que uma possível tentativa de expressão freudiana! Feminista, se recusou a aceitar qualquer categoria que a enquadrasse como artista mulher, como representante do universo feminino. Com Stieglitz teve uma parceria de negócios de sucesso. Apoiando-se um no outro, tiraram proveito do prestígio de cada um expandindo vias que os estabeleceram juntos, na história da arte, no que de maior fizeram. Tanto um quanto o outro. Era uma aliança em silêncio. Exatamente feito as obras dela: as flores exageradas, reconhecidas, populares me dizem nada. A luz das paisagens, a expressão minimalista me comovem porque me enchem de vazios, me fazem silêncio.

 

Sugestões:

  • O diálogo entre O’Keefe e Stieglitz está no livro Georgia O’Keefe and Alfred Stieglitz, de Peter Connel-Ritcher. A obra fala sobre a aliança entre a artista e o empresário, entre a feminista acidental e o fotógrafo.
  • “Georgia O’Keefe”, mostra na Tate Modern em Londres até 30 de outubro.

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Nara Vidal é mineira de Guarani. Formada em Letras pela UFRJ, é Mestre em Artes pela London Met University. Mora na Europa há 14 anos. É autora de infantis, juvenis e seu primeiro adulto, “Lugar Comum” (Editora Pasavento), já em reimpressão, foi lançado em abril deste ano. Nara já participou como autora palestrante em diversas feiras literárias como a Flipoços, Clim, FNLIJ e Cheltenham Festival. Premiada com o Maximiano Campos e com o Brazialian Press Awards, Nara tem textos publicados em revistas como Germina, Mallarmargens e Confeitaria. Escreve sobre dança e artes para publicações inglesas. Lança este ano o livro de contos “A loucura dos outros” pela Editora Reformatório.

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