A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto

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A amizade que surgiu entre os escritores Lima Barreto (1881-1922) e Monteiro Lobato (1882-1948) é um dos episódios mais intrigantes da história dos intelectuais brasileiros. Os dois literatos trocaram cartas entre 1918 até 1922. Nessa época, o carioca Afonso Henriques já era reconhecido entre toda uma nova geração de aspirantes ao mundo das letras como um coerente e talentoso polemista. Mais do que isso, o próprio Lobato, ao escrever um artigo em sua Revista do Brasil, considerou Lima o “criador de uma nova fórmula de romance. O romance de crítica social sem doutrinarismo dogmático”. Essas missivas podem ser encontradas no segundo tomo da Correspondência de Lima Barreto, organizado em 1956 por Francisco de Assis Barbosa e publicado pela Editora Brasiliense.

O paulista Monteiro Lobato era o editor da Revista do Brasil e, em 2 de setembro de 1918, escreveu para Lima Barreto afirmando que desejava “ardentemente vê-lo entre seus colaboradores”. Frisa ainda que Afonso Henriques poderia colaborar com “contos, romances, o diabo, mas à moda do Policarpo Quaresma, da Bruzundanga, etc. A confraria é pobre, mas paga, por isso não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo”. Esse contato foi bem vindo pelo escritor carioca, que além de ter se tornado colunista do impresso de Lobato, ainda firmou um contrato para a editoração do romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

Essa obra barretiana foi escrita nos moldes de uma biografia ficcional, na qual o protagonista, Gonzaga de Sá, funcionário público aposentado, tem uma vida solitária e melancólica em meio a livros de Voltaire e Schopenhauer. Trata-se de uma abordagem literária sobre a aquisição do saber e os infortúnios que a visão crítica da sociedade pode trazer para a vida pessoal de um indivíduo. Gonzaga de Sá desenvolve uma grande amizade com Augusto Machado, um jovem que passa a admirar a inteligência desse distinto senhor e, após seu falecimento, se sente na obrigação de escrever suas memórias.

vida e morte

Quando fechou o contrato de editoração desse belo romance com Monteiro Lobato, Lima Barreto envia uma carta para ele, em 2 de dezembro de 1918, afirmando o seguinte: “de há muito devia ter-lhe escrito, manifestando os meus agradecimentos e acusando também o recebimento dos oitocentos mil-réis e uma das vias do contrato estabelecido entre a Revista do Brasil e eu, para a publicação do Gonzaga de Sá”.

Monteiro Lobato editou também a segunda edição do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha: a célebre sátira barretiana sobre os bastidores da vida literária, nas redações dos jornais do Rio, na Primeira República. Em 26 de dezembro de 1918, Lima Barreto envia uma carta para o confrade paulista acusando o recebimento da obra Urupês e que tencionava viajar até São Paulo para conhecê-lo pessoalmente. Bem humorado, afirma, nessa epístola, “não sou doutor em coisa alguma – graças a Deus!”. Na resposta de Lobato, datada de 28 de dezembro de 1918, o autor de Urupês afirma que é um homem roceiro, rústico. Fala do quanto ficou maravilhado com a leitura de romances de Lima como Triste fim de Policarpo Quaresma, Numa e a Ninfa e conclui: “o Brasil é a terra onde o certo dá errado e o errado dá certo”.

As cartas trocadas entre os escritores, aparentemente, eram constantemente extraviadas pelos Correios. Isso tornava, frequentemente, a comunicação entre os dois tensa. Em 18 de março de 1919, Lima Barreto parece aborrecido ao escrever para Lobato o seguinte: “apesar de não ter até hoje resposta de três sucessivas cartas que te escrevi, (…) mando-te mais este bilhete”. Monteiro responde o seguinte, em 19 de março do mesmo ano: “Já te respondi creio que até duas vezes”. Em uma carta não datada, o editor da Revista do Brasil se despediu desse modo: “adeus; de repente surjo por aí e vamos nos conhecer de cara”. Como resposta, em 8 de março de 1919, Lima Barreto, na época das eleições fraudulentas que tanto marcaram esse período da história do Brasil, afirma: “aqui fico, doido que acabe na minha taba esses golpes de tacape para escolher o sujeito que nos deve fazer morrer, segundo os rituais da democracia e do civismo”.

Essa fase foi muito difícil em termos de vida pessoal para Lima Barreto. Entregue ao consumo exagerado de álcool – uma válvula de escape para os problemas pessoais, motivados, principalmente, pela falta de reconhecimento da Academia Brasileira de Letras – o autor de Policarpo Quaresma foi internado no Hospital Nacional de Alienados, após ser achado delirando pelas ruas do subúrbio carioca de Todos os Santos. Monteiro Lobato escreveu, em uma epístola não datada, o seguinte, sobre esse lamentável episódio: “não imaginas como nos deixou tristes e apreensivos a notícia da tua entrada no hospício. (…) Já saíste. Pois muito bem e muitos parabéns”.

Ficha de internação de Lima Barreto no Hospital Nacional de Alienados, em 1919, com o diagnóstico de alcoolismo.
Ficha de internação de Lima Barreto no Hospital Nacional de Alienados, em 1919, com o diagnóstico de alcoolismo.

A troca de cartas entre os escritores revela também suas discordâncias sobre as questões políticas mais urgentes da época. Simpatizante de uma linha mais branda do ideário anarquista, chegando a colaborar para jornais proletários, de São Paulo, como Não matarás e A voz do trabalhador, Lima Barreto é franco com Monteiro Lobato ao lhe remeter uma carta, em 18 de maio de 1920, com o seguinte dizer: “o que acho é que rescendes muito a patriotismo e pretendes criar de assentada muitas coisas nestes Brasis. Poder ser… Uma coisa, porém, eu te observo: é que uma terra tão antiga como a nossa (…) parece estar fadada a não criar nada de seu”. Como resposta, em 31 de maio de 1920, Monteiro Lobato alega que esteve no Rio de Janeiro, para conhecer pessoalmente o amigo carioca, mas não obteve sucesso em sua busca por “fregues, botequins e… casas de garapa. Cheguei a espiar debaixo de certas mesas… Mas nada do Lima. (…) Tens razão no que dizes do meu livro e do nosso passado, porque a verdade verdadeira é que não somos ainda nem sequer presente – mero futurozinho apenas”.

As afirmações de Monteiro Lobato são bastante maliciosas e suas entrelinhas foram bem captadas por Lima Barreto. O autor de Urupês praticamente insinuou que Lima se comportava como um tipo de escravo fujão. Em 19 de outubro de 1920, Lima Barreto escreveu, em uma missiva, o seguinte para o confrade: “sei que andaste à minha procura. Não sou quilombola. Resido e moro à Rua Major Mascarenhas 26, Todos os Santos, onde, como senador romano que sou, recebo os meus clientes das sete às dez horas da manhã. Se queres, eu te receberei cordialmente”.

Existem ainda outras cartas trocadas entre os escritores que, pouco a pouco, vão se tornando bilhetes. Francisco de Assis Barbosa, principal biógrafo de Lima Barreto, alega que o médico e escritor Gastão Cruls (1888-1959) confirmou que Monteiro Lobato localizou o autor de Isaías Caminha quando esteve no Rio de Janeiro. Porém, Lima estava tão embriagado que Lobato não teve coragem de se apresentar ao sujeito que considerava o maior dos romancistas brasileiros. Quer dizer, Lobato admirou o escritor Lima Barreto, mas não soube aceitar o homem Lima Barreto.

Para saber mais:
BARRETO, Lima. Correspondência: ativa e passiva. Tomo II. 2ª ed. Prefácio de B. Quadros. São Paulo: Brasiliense, 1961.

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