O escritor coveiro e algumas digressões sobre a morte

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Francisco Pinto de Campos Neto, o Tico, é um escritor que também tem a profissão de coveiro.  Segundo ele,  o ambiente do seu trabalho o inspira. Declara que não escreve no seu local de trabalho, mas enquanto caminha pelo lugar, tem ideias.

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Francisco Pinto de Campos Neto, o Tico.

 

Fiquei curiosa ao tomar conhecimento de um escritor que tem também a profissão de coveiro. Mais interessante ainda foi ele declarar que o ambiente do seu trabalho o inspira. Seu nome é Francisco Pinto de Campos Neto, o Tico, também conhecido como “Bukowski do Campo Limpo”. Bukowski dizia que não há nada a lamentar sobre a morte e sim sobre a vida que não se viveu ou sobre o tipo de vida que se viveu. Parece que ele estava certo, perdemos tempo demais buscando uma maneira de não desaparecer.

Quando a mãe de Francisco morreu em 2010 ele foi parar na rua e nas drogas; então viu um anúncio para ser Sepultador no Cemitério da Consolação. Conseguiu 10 reais para a inscrição, se preparou e passou. Lançou seu primeiro livro em 2006, uma coletânea de contos chamada Elas, etc., bancada por um amigo, que ninguém leu. Enquanto aguardava o resultado do concurso, através de um outro amigo conseguiu que uma agência de fomento à cultura publicasse 500 cópias do seu segundo livro, As Núpcias do Escorpião. Agora está indo para o terceiro livro. Francisco diz que não escreve no seu local de trabalho, mas enquanto caminha pelo lugar, tem ideias.

Lembrei que, em um cemitério, o que me chama a atenção não são os epitáfios, mas os nomes e as datas de nascimento e morte gravados nas placas. Nossa vida se encontra nesse breve lapso de tempo, nesse intervalo onde se forja a história desconhecida de cada um, daquilo que nos torna únicos. E me causa pesar aqueles interlúdios tão curtos entre o início e o fim, onde a vida abruptamente se interrompeu.

Francisco diz que tem muita coisa guardada desde os 14 anos; em 1980 chegou a passar em Letras na USP, mas não chegou a terminar o curso. Gosta de dizer que escreve, para citar Dostoievski, sobre os humilhados e os ofendidos, os miseráveis de modo geral, mas não fala só de grana: os miseráveis de criatividade, de afetividade, de tudo. Eis a miséria que não discrimina. Ele fala muito também sobre loucura, pois esteve 20 vezes internado por causa de drogas e diz ter ficado tanto em clínicas de classe média quanto em lugares horríveis onde tratam o interno como um animal, e quer mostrar o que viveu. Há mesmo “normalidades” assustadoras.

Francisco considera a profissão de coveiro como qualquer outra, e tem razão. Mas na cultura ocidental tudo que diz respeito à morte é cercado de um certo tabu. Nossa cultura aceita menos a morte do que a cultura oriental, onde a morte é encarada com mais naturalidade, como parte do mesmo ciclo da Vida. Lá até as crianças participam das cerimônias fúnebres, aqui aprendemos desde criança que a morte traz imenso sofrimento e até evitam contá-la para nós. Não falar sobre o que nos causa temor ou que não sabemos como lidar é uma maneira de fazer de conta que não acontece.

Em nossa sociedade contemporânea, onde a beleza, a juventude e a felicidade permanentes nunca foram tão cultuados, tudo que diz respeito ao fim como velhice, decrepitude e morte devem ser evitados. O fim deve ser cada vez mais asséptico, distante, impessoal. Por isso não me causou surpresa quando descobri a existência de velório virtual. Já podemos nos despedir de amigos e parentes sem a nossa presença, independente da distância. Como acontece com toda encenação social, os eventos que cercam a morte não deixam de ter seu caráter tragicômico.

Hoje, Francisco diz viver em um quartinho numa pensão, um lugar pequeno mas dele, e é lá que escreve. Se for possível tirar alguma conclusão sobre a morte, é que o fato de termos consciência do nosso fim é uma razão das mais fortes para apreciar a Vida.

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