Sobre o que se entende por fluxo de consciência na literatura

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Como vocês devem supor, os textos que escrevo para o Homo Literatus nascem de meus interesses. Tenho curiosidade por algo, pesquiso, leio e depois transcrevo para cá. É um processo que me agrada, pois posso aprender e dividir isso, como acredito que deve ser a internet.

Numa destas minhas empreitadas curiosas, questionei-me sobre minha compreensão a respeito do tão falado fluxo de consciência na literatura. Tinha a impressão que sabia o que era, porém se fosse convidado a explicar o assunto, certamente não conseguiria. Deparei-me então com um interessante trabalho de Robert Humphrey: O Fluxo da Consciência (um estudo sobre James Joyce, Virgínia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros).

Compreendi que o fluxo de consciência, em poucas palavras, nada mais é do que uma tentativa de escrever simulando a ordem – ou desordem – dos pensamentos, utilizando para isso da quebra das regras gramaticais.

No estudo que li, Humphrey afirma que o escritor que busca este estilo precisa fazer apenas duas coisas:

“(1) representar a verdadeira textura da consciência, e (2) destilar algum significado desta para o leitor. Isto constitui um dilema para o escritor, porque a natureza da consciência subentende um senso de valores particular, associações particulares e relacionamentos particulares, peculiares a essa consciência; por isso, é mais enigmática para uma consciência de fora”. (pg. 58).

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William Faulkner, um dos maiores escritores do fluxo de consciência

Um grande desafio? Sem dúvidas. Mas quem se propõe a escrever não precisa, necessariamente, recorrer a caminhos fáceis; e não quero dizer que defenda uma literatura incompreensível. James Joyce, William Faulkner e Virginia Woolf são os grandes nomes deste estilo. Mesmo que nenhum deles seja considerado leitura “fácil”, não quer dizer que sejam totalmente obscuros, como certa elite intelectual pretende envolvê-los; provavelmente com o intuito de não se sentirem ameaçados. A primeira parte de O Som e a Fúria, de Faulkner, desafia o leitor. Principalmente, se este estiver desinformado do fato de que o escritor americano descreve o fluxo de consciência de um deficiente mental. A narração merece ser aplaudida de pé, mas o melhor fica para o final, quando Faulkner descreve a fúria de Jason Compson em punir sua sobrinha. Quem leu Joyce não pode deixar de pensar nas inúmeras passagens em que a técnica é utilizada. Destaco o trecho final do monólogo de Molly Bloom, em Ulysses:

“o sol brilha para você ele me disse no dia em que estávamos deitados entre os rododendros no cabo de Howth com seu terno de tweed cinza e seu chapéu de palha no dia em que eu o levei a se declarar sim primeiro eu lhe dei um pedacinho de doce de amêndoa que tinha em minha boca e era ano bissexto como agora sim há 16 anos meu Deus depois daquele longo beijo quase perdi o fôlego sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim certo somos flores todo o corpo da mulher sim foi a única coisa verdadeira que ele me disse em sua vida e o sol está brilhando para você hoje sim por isso ele me agradava vi que ele sabia ou sentia o que era uma mulher e tive a certeza de que poderia sempre fazer dele o que eu quisesse e dei-lhe todo prazer que pude para levá-lo a me pedir o sim e eu não quis responder logo só fiquei olhando para o mar e para o céu pensando em tantas coisas que ele não sabia em Mulvey e no Sr. Stanhope e Hester e papai e no velho capitão Groves e nos marinheiros que brincavam de boca-de-forno de cabra-cega de mão-na-mula como eles diziam no molhe e a sentinela defronte à casa do governador com a coisa em redor de seu capacete branco pobre diabo meio assado e as moças espanholas rindo com seus xales e seus pentes enormes e os pregões na manhã os gregos judeus árabes e não sei que diabo de gente ainda de todos os cantos da Europa e na rua Duke e o mercado de aves cheio de cacarejos em frente a casa de Lalaby Sharon e os pobres burricos tropicando meio adormecidos e os vagabundos encapotados dormindo na sombra das escadas e as enormes rodas dos carros de boi e o velho castelo velho de milênios sim e aqueles belos mouros todos de branco e de turbante como reis pedindo a você que se sente em suas minúsculas barracas e Ronda janelas velhas de pousadas olhos espiando por detrás de rótulas para que seu amante beije as grades de ferro e as tabernas semicerradas à noite e as castanholas e a noite que perdemos o barco em Algeciras o vigia rondando sereno com sua lanterna e Oh aquela terrível torrente profundofluente Oh e o mar carmim às vezes como fogo e os poentes gloriosos e as figueiras nos jardins da Alameda sim todas as estranhas vielas e casas rosa e azul e laranja e os rosais e os jasmins e os gerânios e os cáctus e Gibraltar quando eu era jovem uma Flor da montanha sim quando eu pus a rosa em meus cabelos como as moças andaluzas ou de certo uma vermelha sim e como ele me beijou sob o muro mourisco e eu pensei bem tanto faz ele como outro e então convidei-o com os olhos a perguntar-me de novo sim ele perguntou-me se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro enlacei-o com meus braços sim e puxei-o para mim para que pudesse sentir meus seios só perfume sim e seu coração disparando como louco e sim eu disse sim eu quero Sim”.

Virginia Woolf
Virginia Woolf, outro expoente do fluxo de consciência

Numa explanação rápida, acredito que tenha ficado mais claro a que se refere quando se fala do fluxo de consciência na literatura, esta técnica tão incrível. Embora eu acredite que não caiba mais utilizá-la num romance inteiro – afinal Joyce, Faulkner e Woolf já esgotaram as possibilidades –, penso que pode ser dissolvida dentro de boas histórias, principalmente aquelas que se concentram com vigor em determinados personagens.

Para encerrar, deixo um complemento de Robert Humphrey, no livro já citado, ao tema em questão:

“Assim, mesmo por meios puramente externos, o fluxo da vida mental na ficção pode ser apresentado e controlado. Vimos que o princípio essencial do movimento da consciência é a lei comum da associação mental, o que foi reconhecido e explorado pelos escritores de fluxo de consciência, que também tomaram artifícios emprestados à técnica cinematográfica e fizeram uso especial da pontuação convencional a fim de apresentar e controlar o fluxo. Mas o fluxo é apenas uma das duas qualidades óbvias da consciência. A outra é sua intimidade; isto é, os aspectos não formulados e incoerentes que fazem com que qualquer consciência isolada seja um enigma para qualquer outra”. (pg. 55).

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