Você vê as datas festivas chegando e é tomado por um pavor indomável, vai rever sua sobrinha de oito anos, mas novamente não saberá o que fazer.
Há uma lei inexorável no universo, provavelmente ditada por um cogumelo verde ancião, que alguns seres humanos nascerão desprovidos do mínimo que seja de empatia com crianças. Por mais que as adorem, as cultuem, não terão como mudar isso. Ficar a sós com um dos pequeninos é mais difícil do que montar uma andorinha numa travessia oceânica.
Eu sou um destes escolhidos e tenho uma sobrinha, linda e distante.
No dia a dia, não tenho contato com criança alguma, mesmo que as ache fascinantes; tão mais capazes que os adultos. Penso que à medida que crescemos, vamos nos esvaziando da nossa natureza criativa e tornando-nos frios e ranzinzas; desprovidos da curiosidade de descobrir o que há com este mundo a que fomos jogados para viver nele.
Vejo minha sobrinha uma ou duas vezes por ano, pela distância terrena que me separa dela; isto faz com que se torne mais difícil ainda de eu, com minha empatia minguada, criar qualquer laço com a menina.
No entanto, tive uma ideia. Há poucos meses atrás, minha mãe voltou da casa do meu irmão dizendo:
– A Ana Flávia – minha sobrinha – só quer saber de ler, nem dá atenção pra gente.
Na mesma hora, meus olhos brilharam. Quer dizer que minha sobrinha adora ler, sem influência de pai e mãe que não têm o hábito, pensei. Resultado, fui à livraria e comprei um exemplar de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, numa edição belíssima de capa amarela da editora Jorge Zahar.
Veio o dia do Natal, trazendo a minha pimpolha falante e magricela. Pouco depois da comitiva familiar chegar, eu timidamente disse à menina que tinha um presente para ela. Entreguei-lhe e ela abriu a embalagem com aquela calma típica das crianças, rasgando da forma mais eficiente possível.
Ela abriu um sorriso e me deu um abraço gostoso, tão simples e sincero, como eu nunca tinha recebido. Logo já devorava o primeiro capítulo da história, chegando a dormir com o livro na mão.
Sim, eu fiquei com os olhos brilhando ao olhar para aquela garotinha tão “aliciana”; e tive ainda mais certeza disso, após ficar sabendo que ela tem um coelho de estimação, provavelmente não tão estabanado como o do livro do Lewis Carrol, espero.
As barreiras entre mim e ela caíram e eu me senti como um índio a fumar um cachimbo, afirmando um acordo de paz com a garotinha; com perdão da figura de linguagem aos politicamente corretos.
Acredito que agora, ela e eu somos crianças de um mesmo mundo. Este é o poder de um livro.
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