Unknown Pleasures – Joy Division, do Peter Hook, e Tocando a Distância: Ian Curtis e Joy Division, de Deborah Curtis, oferecem aos leitores duas visões sobre uma das bandas mais marcantes do pós-punk
O som é triste, soturno e friamente profundo. As batidas da bateria, pulsantes, numa obediência quase militar, ecoam sombrias e acabam invocando uma imensa vontade de tirar tudo o que há de mais negro e suprimido por dentro – todas as desilusões, fraquezas e derrotas; aquilo que te engole o coração e a alma, o que te aflige no mais interior dos medos. As canções edificam ao mesmo tempo que destroem, tal como ocorreu com seu porta-voz, o príncipe mais intenso do movimento pós-punk, Ian Curtis. A música convulsiona o corpo e faz com que se mergulhe em uma dança hipnótica, ritualística, em que cada movimento é ditado pelo espírito. Os sentidos se perdem. Colapso. Perda de controle. É desordem. Isto é Joy Division.
“Você grita em seu sono, todos os meus fracassos expostos. E há um gosto em minha boca, enquanto o desespero toma conta. Só que algo tão bom simplesmente não consegue funcionar mais. Mas o amor, o amor vai nos dilacerar outra vez.” (Trecho da música Love Will Tear Us Apart, 1980)
Eles nasceram em 1976, em Manchester, na Inglaterra, com o nome Warsaw, em referência à música Warszawa, do David Bowie. Ian Curtis, que era um viciado em livros de autores como Burroughs, Dostoiévski e Hesse, foi quem nomeou a banda como Joy Division que, originalmente, era a denominação de uma área destinada à exploração sexual de mulheres judias em um campo de concentração nazista dentro do romance The House of Dolls (1956), de Yehiel De-Nur. Manchester, nesta época, era um bloco de concreto: o período industrial predominava e mal se viam árvores nas ruas. Tal característica foi repassada nas músicas da banda, que conseguiu ir um passo além do movimento punk predominante no período, sugando sua simplicidade e o tornando instrospectivo e denso. Mas tudo começou com o punk e seus representantes, como, por exemplo, Sex Pistols. Foi em um show dos Pistols que Bernard Sumner (guitarra e teclados) e Peter Hook (baixo) conheceram Curtis. Com Stephen Morris (percussão e bateria), a banda se formou e lançou o primeiro disco, o clássico Unknown Pleasures, em 1979.
Com o microfone a sua frente, os olhos azuis de Curtis entravam em transe. Suas palavras e dança exótica, vibrante e misteriosa jogavam o público numa neblina de mistério. O sofrimento humano, o isolamento, desilusão amorosa e a alienação foram temas comuns em suas letras. Introspectivo, o vocalista do Joy Division assumia outra personalidade nos palcos. Os ataques epiléticos também acentuavam sua estranheza. Talvez fosse ali a sua fuga. Talvez fosse ali, entoando suas melancolias, o seu momento de satisfação pessoal em um mundo em que, infelizmente, não conseguiu se encontrar. O álbum Closer (1980) foi o último suspiro de Curtis, que cometeu suicídio em 18 de maio de 1980, com 23 anos, enforcando-se na cozinha de sua casa, em Macclesfield, dias antes da banda embarcar em turnê americana. A epilepsia e seus dramas pessoais – um casamento infeliz com Deborah, uma filha pequena para se preocupar e a relação com a amante Annik Honoré – foram alguns pontos que afetaram o psicológico de Curtis, o poeta e o principal protagonista do grupo britânico.
“Fomos estranhos. Fomos estranhos, por tempo demais, por tempo demais. Fomos estranhos, por tempo demais. Violentos, violentos. Fomos estranhos.” (Trecho da música I Remember Nothing, 1979)
O grupo tinha um pacto interno: se um integrante saísse, o nome Joy Division teria também que acabar. Hoje, “Joy Division” se eternizou. Os outros integrantes continuaram suas vidas, fazendo o que mais sabiam e gostavam: tocando. E assim surgiu o New Order, que até hoje está na ativa, embora a formação não seja mais a original. Existem diversas biografias e livros relacionados ao universo pós-punk que abordam a história curta do JD, mas são poucas as traduzidas no Brasil. Recentemente, dois títulos se destacam para que tem curiosidade em se aprofundar no tema, obras essenciais para qualquer fã brasileiro: Unknown Pleasures – Joy Division, do baixista Peter Hook, e Tocando a distância: Ian Curtis e Joy Division, de Deborah Curtis, esposa do vocalista.
O relato biográfico Unknown Pleasures – Joy Division, do Hook, foi lançado em português recentemente pela Editora Janguada. De maneira leve, divertida e com uma linguagem bem informal, o baixista conta como a banda surgiu, como conseguiram gravar os primeiros trabalhos e os dois álbuns, as histórias de viagens do grupo dentro de sua van, suas impressões sobre a figura do Ian Curtis, seu relacionamento e amizade com os outros integrantes do Joy Division e demais bandas da época, além de detalhar turnês e shows principais feitos pelo grupo. Hook tira boas gargalhadas do leitor com suas histórias e comentários, que são realmente hilários (por exemplo, ele e Sumner foram expulsos pelo diretor do colégio em que estudaram ao voltarem anos depois para fazerem fotos para uma revista). Na obra, entre os assuntos abordados, o baixista conta, por exemplo, como não enxergaram o aviso de alerta sobre a situação de Ian Curtis nas letras do JD, que só foram realmente interpretadas após a sua morte – na época, só se importavam com a sonoridade. O livro também traz a discografia do Joy Division comentada, faixa por faixa, em que Hook revela certos aspectos, impressões, influências musicais e bastidores de gravações. É um prato realmente cheio para quem deseja saber como tudo aconteceu (na visão de Hook, a “porra louca”, é claro).
Outro relato biográfico, que traz uma visão bem diferente de Hook, é o da esposa de Ian, a Deborah Curtis,
no livro Tocando a Distância: Ian Curtis e Joy Division, que teve edição em português lançada em 2014 pela Edições Ideal. O livro traz aspectos da vida pessoal de Ian Curtis, contando como ele era antes da formação da banda, como conheceu Deborah na adolescência, o desenvolvimento do relacionamento do casal até o divórcio, a forma com que lidavam com a epilepsia (que, naquele tempo, não era uma doença tão conhecida pela medicina). Deborah dá um tapa na cara para quem idolatra JD – sim, Curtis também sabe ser um calhorda, extremamente ciumento, com atitudes machistas. Uma esposa que foi traída conta sua história, uma história relatada por quem ficou esperando em casa enquanto o marido tocava em shows, detalhada por aquela que cuidou da filha, Natalie, enquanto Curtis a traía com a amante:
“Ian achou difícil continuar com suas competições porque não havia nenhum lugar em que pudesse encontrar uma solidão confortável. As restrições de vivermos com parentes ficaram para trás, e nosso relacionamento teria sido tempestuosos se não fosse pela recusa de Ian em se comunicar comigo. Essa era uma maneira pela qual ele evitava o confronto. Numa noite, ele virou as costas para mim diversas vezes. Desesperada, eu mordi as suas costas. Chocado pela leve marca de sangue em minha boca, fui recompensada ao ser chutada para o chão.” (Deborah Curtis, p. 8)
A obra resgata o prefácio da primeira edição, de 1995, escrito por Jon Savage; a edição brasileira também vem com um texto introdutório assinado por Kid Vinil. Nos extras, todas as letras de autoria de Ian Curtis, com versões traduzidas, além de escritos inacabados. Também recomenda-se, como leitura audiovisual complementar, assistir ao documentário “Joy Division” (2008), de Grant Lee, muito mencionado por Hook em seu livro. Uma visão mais romantizada da banda pode ser encontrada no filme “Control” (2007), dirigido por Anton Corbijn e baseado no livro de Deborah. A fotografia em preto e branco, que procura evidenciar a atmosfera sonora da banda e de seu final trágico, é um dos destaques deste longa-metragem. Além da atuação assustadoramente magnífica do ator Sam Riley fazendo o papel de Curtis.
Bibliografia:
Tocando a Distância: Ian Curtis e Joy Division, de Deborah Curtis. Edições Ideal, 2014, 328p.
Unknown Pleasures – Joy Division, de Peter Hook. Editora Janguada, 2015, 320p.