O poder da tradução: muito além da adaptação linguística

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Por que uma tradução vai muito além de uma mera passagem de um idioma para o outro
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É muito comum consumirmos literatura estrangeira (principalmente a americana contemporânea, francesa, inglesa e italiana). Diria que até mais comum que o consumo de nossa literatura brasileira. Os sucessos mundiais de vendas em livros são, inclusive, de não-brasileiros, e com a adaptação cinematográfica desses best-seller, o incentivo ao consumo estrangeiro é enorme. E não que isso seja um problema, pelo contrário. Quando lemos um livro de outra cultura e língua muito  é absorvido. Há nele expressões, histórias e personagens que a princípio podem nos parecer estranhos, mas pouco a pouco vamos os absorvendo em nosso mundo e eles passam a fazer parte de nós. E o acesso a essa explosão cultural chega a nós por meio da tradução – a não ser que você seja capaz de ler em outro idioma, mas aí a questão é outra.
As primeiras traduções, no ocidente, foram da Bíblia, e convenhamos, existem diferentes teorias da conspiração e controvérsias sobre essas traduções. Relata-se que os judeus passaram muito tempo sem falar hebraico, e por consequência as escrituras tiveram que ser traduzidas para o entendimento deles. Em um documento, a carta de Aristéas, diz que no Egito 72 sábios traduziam do hebreu para o grego as sagradas escrituras, e essa versão da bíblia é conhecida como a versão de Alexandrina. Já no século II a bíblia foi traduzida do grego para o latim, e ficou conhecida como a Vetus Latina. Alguns teóricos apontam como os romanos os precursores das traduções.
Mas falemos um pouco de línguas. Cada povo, ao longo dos anos foi fixando sua maneira de comunicação, e a cada distância entre povos, uma nova língua se fazia presente. Diz-se ainda que a diferença linguística nasceu na Torre de Babel. Mas o que importa aqui é: cada povo desenvolveu sua própria maneira de se comunicar através da fala e da escrita. Deu-se então ao longo dos anos o crescimento populacional, expansão territorial, conquistas marinhas, colonizações e guerras. As culturas começaram a se misturar. Com a linguagem não foi diferente, e ela se tornou uma forma de poder. Podemos notar sua importância no livro 1984 de George Orwell: a perda da língua materna leva consigo muito mais do que apenas o falar, leva a história e a liberdade. A África, como exemplo concreto, teve um choque imenso em sua colonização quando as tribos e milhões de cidades perderam seu poder de comunicação materno.
O entendimento da linguagem do outro se fez necessária para que se pudessem ser feitas trocas comerciais e muitas vezes culturais, o homem teve que aprender a entender e decifrar as línguas de outros povos por necessidade. A troca cultural e comercial passou a mover o mundo e aos poucos chegamos ao que somos atualmente, o chamado mundo globalizado, que tem bastante diferença idiomática entre si. A tradução passou a ser mais do que uma necessidade.
De seu princípio até hoje, o que a tradução mais nos trouxe de benefício é o acesso. Acesso aos escritos de outras línguas e acesso à cultura de diferentes povos. Pudemos através dela trazer a história antiga até hoje como referência de estudos e mundo. E é isso o que a tradução ainda faz.
No dicionário, tradução significa: Ação de traduzir ou de “transformar” de uma língua para outra. Obra ou texto traduzido, versão traduzida.
E chegamos ao ponto dessa matéria.
A tradução, em específico de um livro (mas podemos pensar no generalizado também), não é apenas uma transcrição linguística para outro idioma. A tradução é quase como um segundo escrito daquele livro. Há quem diz que ninguém conhece melhor o escritor do que seu tradutor, e há ainda quem diga que um tradutor é um escritor. Um tradutor tem que estar não apenas em conhecimento linguístico, mas em uma conexão com aquela cultura, aquele povo, aqueles costumes e principalmente: entender o que o escritor quer dizer, para então trazer a história pro leitor de um idioma e cultura diferente daquele original. Por isso, o entender perante os livros traduzidos não é apenas linguístico.
São os tradutores que ajudam a manter, também, obras clássicas em atualidade. Não basta apenas traduzir linguisticamente uma obra antiga, você precisa trazê-la para o contexto atual, e muito mais do que editar um texto, você o traz para o contemporâneo. E antes que as pedras venham, ninguém está dizendo que um tradutor vai mudar a obra, muito pelo contrário. A função (e que trabalho, hein) do tradutor é justamente essa: trazer a obra (seja ela contemporânea ou antiga) para outro idioma, mantê-la atual e manter a essência da obra original. Como exemplo, uma tradução atual de Shakespeare não apenas reproduz em português o que foi dito em inglês, mas sim traz aos dias atuais as ideias e o significado daquele texto, mas não muda sua essência. Até porque, se você só traduzir a obra ela terá termos que não fazem mais parte da nossa língua (sim, o mesmo problema que temos com obras clássicas brasileiras, mas no caso de tradução é um pouco mais complexo). É quase como fazer soar natural na nossa língua e cultura algo que nunca foi nosso. Em caso de obras clássicas, o tradutor precisa ainda de uma conexão e um entendimento mútuo sobre o período em que a obra foi escrita.
A ideia é fácil de ser entendida fazendo uma analogia com o humor; piadas norte-americanas não tem necessariamente graça para nós, principalmente se for uma “piada interna”, nem iríamos entender, a não ser que fôssemos inseridos ou conhecedores da cultura deles. É complicado ter um texto completamente entendível para todos os povos. Imaginem o problema que foi na Itália entender sobre reis e súditos que havia nas obras de Shakespeare (que pra quem chegou no mundo agora, ele era Inglês). São mundos diferentes, e a tradução tem como passo não só trazer a língua para mais próximo, mas a história em si (e pra isso, amigos, também existe introdução, nota do tradutor e adendos da obra que são usadas para trazer o público àquele mundo, mas podemos falar desses em uma próxima matéria).
Vale lembrar que apenas falar outra língua não torna ninguém tradutor. Um tradutor deve ser capaz de ler, entender e manter ideias entre as línguas distintas. Um tradutor tem que transmitir o significado original e sem distorções.
E agora uma coisa um pouco importante, a que muitas vezes (eu pelo menos o fiz muito) nem prestamos atenção: ter o tradutor como referência literária. Um tradutor pode, e por não apenas (ou no caso por apenas), fazer uma tradução linguística, destruir uma obra incrível, e pode fazer o contrário também. Não é difícil encontrar pessoas que leram obras traduzidas e originais e a percepção foi completamente diferente, como dois livros distintos. É quase como a adaptação de livros pro cinema: se o diretor não fizer bem feito, a magia toda se perde.
A tradução, por mais invisível que pareça a princípio, é um fator decisivo e importantíssimo pra leitura, é através dela que nosso acesso e consumo de livros estrangeiros acontece. Vale lembrar que é a tradução que traz para nós muito do que é produzido em outros países e que não teríamos um acesso ou um conhecimento tão próximo se não fossem traduzidos.
É pela tradução que a literatura adquire um gosto ainda mais agridoce.

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