Ultimamente, parece que os psicopatas estão na moda. Há muitos livros, filmes e séries cujos protagonistas têm características ligadas a esse distúrbio. A psicopatia é, segundo a classificação da psicologia, um transtorno de personalidade dissocial ou antissocial. Psicopatas são racionais, calculistas, metódicos, egocêntricos, não sentem remorso nem desenvolvem afeto, só para se ter uma ideia. Nem todos se tornam assassinos ou serial killers, mas há uma séria tendência, tendo em vista o seu desprezo pela sociedade e pelas pessoas em geral.
O romance Precisamos falar sobre o Kevin, da autora americana Lionel Shriver, que teve também uma adaptação para o cinema, trata da figura do psicopata sob a perspectiva da mãe. Eva Khatchadourian, a mãe do Kevin em questão, escreve cartas ao marido ausente, relembrando a história da família desde um pouco antes do nascimento do primogênito, numa tentativa de compreender a personalidade do filho e o porquê de ele ter realizado um massacre em seu colégio, deixando nove mortos e dois feridos. Tenso.
Para começar, Eva não queria ter filhos. Quem queria ser pai era o seu marido e ela tenta se convencer da ideia, mas não suporta a privação de sua liberdade que a maternidade sem dúvidas causará. Isso porque ela é agente de viagens e adora sair pelo mundo para viver aventuras. Sua relação com o marido já é um pouco estranha: os diálogos entre os dois são confusos, inconclusivos e limitados. Franklin é um americano bonachão e acomodado, que quer se estabilizar e formar uma família. Ele é o oposto de Eva, mas ela o ama muito e acaba cedendo.
Conclusão: nasce Kevin. E a chave da história é o relacionamento que ele desenvolverá com a mãe, e já adianto, é bem turbulento. Mãe e filho se provocam o tempo todo: ela tem depressão pós-parto ao mesmo tempo em que ele recusa seu peito para mamar, ele chora sem parar quando bebê, demora a usar o banheiro, até que ela o agride fisicamente (e ele diz, anos depois, que sente orgulho disso), ele suja seu escritório, etc. Kevin tem um comportamento atípico desde criança: ele é apático, desinteressado, desapegado, dissimulado socialmente. Bem psicopata mesmo. Eva fica desesperada por não conseguir se entender com seu filho nem controlá-lo. Enquanto isso, Franklin se faz de cego para o que o menino apronta, não acredita nas desconfianças da esposa e prefere bancar o paizão legal.
O mais interessante é que Eva, ao estudar o comportamento de
Kevin, acaba fazendo uma espécie de autoanálise. Ela se questiona sobre qual teria sido sua parcela de culpa no ato assassino do filho, se não está nela a origem de sua monstruosidade. Então descobrimos que Eva também é meio sinistra: ela é extremamente crítica, individualista, racional e manipuladora, ainda que num grau, digamos, mais light. Mas Eva é uma pessoa comum, que age dentro da ética. Aí podemos começar a fazer uma série de questionamentos, por exemplo: como identificar um monstro? Será que todo mundo não tem um “lado monstro” dentro de si?
O monstro contemporâneo, no caso, o psicopata, é muito sutil e ardiloso. Ele não porta características físicas específicas e pode se camuflar socialmente com facilidade. Ele é apenas um ser humano comum. Por isso, é difícil identificá-lo. Mas como é possível diferenciar uma pessoa normal, com qualidades e defeitos, de um psicopata frio?
Primeiro, há algo que a própria Eva comenta no livro: a diferença entre pensamento e execução. Todos pensamos às vezes em cometer ações perversas. Mas existe uma barreira moral que nos impede de agir impulsivamente e prejudicar os outros. Para o psicopata, essa barreira não existe, ele a ignora e faz o que quer, sem freios nem arrependimentos. Outro ponto é a gradação. Consideremos que há uma espécie de monstruosidade parcial e não manifesta, que é o caso de Eva, e uma monstruosidade total e manifesta, que é o caso de Kevin. A monstruosidade parcial pode ser até certo ponto normal e não é prejudicial à sociedade. Já a monstruosidade total é muito provavelmente bastante prejudicial à sociedade, porque será em algum momento exteriorizada. Isso quer dizer que, se todo mundo pode ter um lado negro, apenas alguns irão manifestá-lo de modo nocivo. Por último, a própria situação interfere na questão. Vivemos num contexto de capitalismo, futilidade, violência, supervalorização do material e pouca expressão dos sentimentos. Essa pode ser uma sociedade “criadora de monstros”. Também há a situação da protagonista Eva, que se vê abalada por uma tragédia familiar que traz à tona sua parcela de monstruosidade.
Kevin diz muito sobre a nossa época, sobre a nossa sociedade e sobre o próprio ser humano. Compreendê-lo talvez seja a chave para detê-lo. Mas, ao compreendê-lo, há o risco de se descobrir igual a ele, como acontece com Eva. Ou seja, entramos num beco sem saída. E agora? É preciso falar sobre o Kevin. É preciso descobrir a origem desse monstro e aprender a lidar com ele.
Você pode ler o ensaio completo que eu fiz sobre o livro neste link.