V de vingança ou a contradição que nós brasileiros nos tornamos

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V de vingança ou a contradição que nós brasileiros nos tornamos

O que a nossa relação com V de vingança mostra sobre o Brasil contemporâneo?

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O Brasil não é para principiantes. Adoro essa frase pela simplicidade da ideia e pela assustadora verdade que ela porta. Tentar entender o nosso país e suas contradições não é uma tarefa para todos. O sangue sobe aos olhos da maioria numa velocidade incrível e nos cega para coisas óbvias – não por acaso Sergio Buarque de Holanda chamava o nosso povo de cordial, mas não como um elogio.

2016 também não é um ano típico. Tivemos de tudo um pouco: olimpíadas, impeachment, desgraça sobre desgraça. Um fato, porém, me chama a atenção. Nunca antes na história desse país se falou tanto em política. Desde 2013 o tópico faz parte de tudo. Jornais falam sobre, pessoas discutem e agem etc. Falar do tema virou uma obrigação para qualquer pessoa que queira ser lavada a sério. Opiniões são dadas e ações são tomadas. O que me entristece é ver que ambos os fatos são rasos e irrefletidos. A quantidade de bobagens ditas e praticadas em nome de uma suposta política transgride qualquer nível de surrealismo. Gosto de usar o exemplo de V de vingança e Guy Fawkes como exemplo. Primeiro vamos falar da pessoa e depois do personagem.

Guy Fawkes foi um católico inglês que embarcou na mal sucedida conspiração da pólvora. Católico num país protestante, ele e seu grupo queriam matar o rei e pôr sua irmã no seu lugar. A ideia era explodir o parlamento e todos dentro dele. Não foi um ato de justiça, antes um ato de tomada de poder. Alguém o traiu, o plano falhou, ele foi torturado, condenado e morto em praça pública.

Para muitos ele representa o ideal da mudança e os caminhos para tanto – que não são nem um pouco passivos ou não violentos. Sua figura encarna o lado ativo da mudança histórica. Eis porque o símbolo e a escolha de V.

Agora vamos à obra.

Há duas versões de V de vingança. O filme, que é largamente conhecido, e a graphic novel de Alan Moore, largamente esquecida – não por acaso.

No filme temos V, um revolucionário mascarado que enfrenta um governo fascista à la 1984. Ele se sacrifica pelo bem maior no fim e cria a consciência necessária para a mudança da população. Um anarquista, V destrói e mata pelo tal bem maior. Um fruto de Hollywood, encarna o happy end que a maioria da sociedade ocidental gosta. É baseado na referida graphic novel e acaba com a ideia dela. Virou um símbolo da revolta e da revolução no século XXI.

A graphic novel mostra um V mais cínico, não tão perfeito e muitas vezes questionável. Um humano, imperfeito, não o herói do filme. A cena piegas da iluminação coletiva não existe e o fim é mais trágico e real. O fim não tem nada de heroico. Trata de temas como o fascismo e da sua semente em sociedades modernas e industrializadas, do anarquismo e da questão de identidade.

(Uma nota. Em ambas as obras, ele é fruto e resultado de ataques fascistas a minorias.)

A maioria não se identifica com este V, pois ele não tem nada de modelo, além de desmistificar muitos pontos. Mesmo assim, ele partilha muita coisa com sua versão cinematográfica e Guy Fawkes: são revolucionários, querem uma mudança e não estão dispostos a compactuar com o presente nem com o passado, mesmo que tenham que pegar em armas. São populares e não tem nada contra a revolta – pelo contrário, todos a incentivam em todas as suas formas.

Voltemos ao Brasil.

A situação nacional é caótica. Queremos mudanças, mas elas se direcionam para o passado. Isso mesmo, queremos mudar para um retorno do que foi e falhou. Se você quer nomes, estes são PMDB e PSDB. Eles não podem trazer nada de novo.

Inversamente ao que a lógica possa apontar, nas eleições de 2016 ambos saíram como grandes vencedores (clique aqui e veja os dados). Nossa mudança aponta para mais do mesmo projeto falho que gerou diretamente o Brasil até 2002 e indiretamente durante a era PT no poder. Os anseios de mudança de 2013 resultaram em mais do mesmo.

Outro ponto importante é a guinada reacionária que as manifestações de 2013 geraram – ironicamente, a raiz dessas mesmas manifestações teve origem na esquerda mais radical, como PSTU e PSOL. Há um fortalecimento de um passado bom contra o presente opressor – outra vez, ironicamente, a democracia é a opressora e a ditadura, a libertadora. Estamos voltando cada vez mais para um passado fascista, um passado por muitos idealizados e maquiado, um passado que criou muitos dos problemas atuais. A revolução para a mudança caminha em marcha ré.

Nada ainda?

Além disso, caso você tenha o hábito masoquista de acompanhar comentários de notícias em grandes portais, há outro fenômeno curioso. A negação de fatos e do saber mais sistematizado por personalidades acadêmicas. Pesquisas, dados e opiniões de especialistas são sumariamente negadas. Há um pavor de quem aponte o contrário do que pensamos. Dá-se o nome de esquerdismo, comprado, alienado, entre outros. Dados só são confiáveis quando agregam com a nossa visão e/ou sejam dúbios. Se V prega a melhoria pela verdade, por pior que ela seja, pregamos o avanço pela ignorância.

Nenhuma fogueira alemã queimando livros?

Somos contra tentativas de mudança para a frente. Por exemplo, enquanto escrevo, há milhares de instituições de ensino ocupadas por estudantes contrários à reforma do ensino e à PEC 241. Ambas as propostas marcham para trás em várias vitórias da sociedade e os estudantes vêem isso. No entanto, os acusamos de estar praticando um ato político. É CLARO QUE É UM ATO POLÍTICO BEM COM PROPOR ALGO COMO O PRESIDENTE PROPÕE. Mas não vemos a situação dessa forma. Se o presidente Temer o faz, é necessário; se os estudantes o fazem, é política. Se há algo que V e Guy Fawkes ensinam, é sempre duvidar das boas intenções dos governantes. Estamos no caminho inverso, confiando no PMDB (pode rir, parece piada.)

E qual é o símbolo da revolução reacionária? Guy Fawkes e V, dois progressistas e anti-conformistas. Tudo que eles pregaram e fizeram vai no caminho inverso do que estamos marchando. Mesmo assim insistimos em usar essas máscaras bobas como forma de inconformidade.

Aos que agem conforme V, xingamos.

Há lógica nisso?

O que me surpreende é ver o símbolo criado por um revolucionário, Alan Moore, nas mãos conservadoras. Um símbolo ressignifica pela conformista Hollywood, que simplificou a visão original de Moore. Um paradoxo como o nosso país.

O Brasil não é para iniciantes.

P.S.: Se você achou este texto político e sentiu falta de imparcialidade, lembre: 1) toda ação é politizado, mesmo que não seja política; 2) imparcialidade de opinião é uma lenda urbana como Papai Noel ou a Maria Degolada; 3) se ainda assim você se sente incomodado, é porque você é o alvo deste texto.

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