Em ‘Se um viajante numa noite de Inverno’, o protagonista é você, leitor

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Italo Calvino dá vez e voz ao leitor ao colocá-lo como protagonista de seu romance Se um viajante numa noite de inverno

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O romance Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino (1929-1985), começa com um convite: “Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante na noite de Inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido.” Sinta-se hipnotizado, leitor. Isso mesmo, você é o protagonista do livro.

O primeiro capítulo de Se um viajante é o retrato de um ser amorfo e onipresente no mundo moderno: o leitor médio. O protagonista, o leitor, inicia sua aventura de forma totalmente acidental. Você busca o novo romance de Italo Calvino em uma livraria qualquer, nada mais do que isso. Um livro para ler, de um autor que o leitor não conhece muito bem. Você é nada mais do que um leitor que tateia em meio a um mar de livros, ordenados por classificações que você desconhece e tenta a todo custo entender. Você não sabe, mas está prestes a mergulhar, como protagonista, em uma aventura.

O gatilho do fantástico é simples, imaginativo, leve… – Italo Calvino e sua simplicidade mentirosa. O livro tem um erro de impressão. O livro que você comprou é um começo de romance, nada mais do que 30 páginas que se repetem diversas vezes. Esse fato é o primeiro evento incomum da narrativa. O pacto de leitura é rompido, pois você foi enganado de uma forma aparentemente não literária. O que fazer? Ir em busca do restante do livro, seguir na sua atividade comum, banal, silenciosa e pacífica de leitura. Infelizmente, tiraram isso de você, caro leitor. Você volta à livraria e não consegue o exemplar correto, dão a você um outro livro! Daí por diante, serão exigidos de você os esforços mais hercúleos nos próximos 12 capítulos – os 12 trabalhos de Hércules?- para que você possa voltar à sua leitura.

Se um viajante fala sobre a aventura da leitura, nada mais e tudo isso. Esse tema, aparentemente simples e despretensioso, exige do autor um romance extremamente cerebral. Calvino desenvolve, argumenta e defende “teses” em cada um dos capítulos desse romance. Cada uma dessas “teses” trata de um aspecto da leitura: a leitura banal, a leitura especializada, a crítica, a tradução, a edição, a vendagem, etc. Talvez,  pudéssemos ler esse livro como um romance acerca do sistema literário.

Esse desenvolvimento de argumentos sobre a leitura é articulado a uma hipnotizante beleza narrativa. Ao longo das páginas, são mobilizados diversos clichês de livros que já lemos: a perseguição policial, a desilusão amorosa, grandes conspirações, situações cômicas com personagens secundários estereotipados, tramas burocráticas de tons kafkianos e tantas outras. Calvino ainda lança mão de outras formas de escrita e leitura, como a jornalística, a epistolar e a acadêmica.

O esquema do romance é composto por duas camadas: a primeira, formada por doze capítulos numerados, nos quais encontramos ações do leitor em busca do romance inicial; a segunda, formada por dez “romances”, ou começos de romance que lemos junto com O leitor. Essas duas camadas são costuradas, quase se confundem uma com a outra, demonstrando que ler e viver são atividades homólogas.

Enumero aqui os títulos dos “romances” apresentados e seus autores- alguns deles supostos – que Calvino nos apresenta:   Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino; Fora do povoado de Malbork, do polonês Tatius Bazakbal; Debruçando-se na borda da costa escarpada, do poeta simério Ukko Ahti ; Sem temer o vento e a vertigem, do címbrico Vorts Viljandi; Olha para baixo onde a sombra se adensa, de Bertrand Vandervelde; Numa rede de linhas que se entrelaçam, de Silas Flannery; Numa rede de linhas que se entrecruzam, Flannery/ Marana; No tapete de folhas iluminadas pela lua, de Takakumi Ikota; Ao redor de uma cova vazia, de Calixto Bandeira; Que história espera seu fim lá embaixo?, Anatoly Anatolin. Nomes de autores e livros que temos a impressão de ter visto em alguma prateleira de livraria. Esse fantástico literário que está ancorado na erudição do autor, cria um ambiente imaginário quase que plausível.  Calvino conduz habilmente o ritmo da leitura, promovendo uma mistura de fluidez e cortes na narrativa.

O uso da segunda pessoa e o diálogo com o leitor são recursos essenciais. Um exemplo de como esse modo de narrar está no primeiro plano da construção do livro pode ser encontrado no capítulo 8. Nesse trecho do livro, lemos um trecho do diário de Silas Flannery – um dos autores de um dos dez “romances” – no qual esse escritor voyeur revela sua obsessão pela leitora. Flannery revela -se um escritor inseguro, que ora pensa conduzir as ações da leitora, ora por elas é conduzido. Ao invés de revelar o enigma de quem é o autor, esse capítulo 8 se encerra apresentado mais uma camada do livro:

“Veio-me a ideia de escrever um romance feito só de começos de romances. O protagonista poderia ser um leitor que é continuamente interrompido. […] Poderia escrevê-lo todo na segunda pessoa: você, Leitor.. Poderia também incluir uma Leitora, […] um velho escritor que mantém um diário similar a este…” (CALVINO, 2003, p.202).

Como revelado no parágrafo anterior, o leitor não participa dessa aventura sozinho. Para cada capítulo, há um conjunto de personagens que participam do desenrolar dessas pequenas tramas que compõem o conjunto. Encontramos o livreiro, o editor, os especialistas em literatura da universidade, leitoras, o tradutor, menos o autor que está sempre em fuga. Em certo ponto da narrativa, sua obsessão será encontrar o autor por trás desses “romances”. Em certo momento ele se torna o grande vilão da história. Mas ele some sempre que você pensa encontrá-lo. Seu relacionamento com a leitora vai se tornando cada vez mais intenso e a aventura da busca ganha um peso cada vez maior em relação ao desejo inicial de resolver o mistério da autoria. Em certo ponto você pensará:

“Como fazer para derrotar não os autores, mas a função autor, a ideia de que atrás de cada livro há alguém que garante a verdade daquele mundo de fantasmas e ficções pelo simples fato de ter nele investido sua própria verdade, de ter se identificado com essa construção de palavras?” (CALVINO, 2003, p. 163)

Por fim, a construção labiríntica da obra é constantemente reafirmada. Do mesmo modo que a conclusão de Cidades Invisíveis é de que todas aquelas cidades são uma só, você dirá como última frase:  “- Só mais um instante. Estou quase acabando Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino.”

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Se um viajante numa noite de inverno (Companhia das Letras, 2003)

No apêndice – um excesso ou uma esperteza do editor – a sagacidade de Calvino é exposta por meio de uma carta sua ao crítico literário Angelo Guglielmi (1929-). Calvino propõe um esquema, rocambolesco e maroto, no qual cada um dos dez “romances” seriam exemplos de classificações romanescas: romance da neblina, da experiência, simbólico-interpretativo, político existencial, cínico-brutal, da angústia, lógico-geométrico, da perversão, telúrico-primordial e apocalíptico. Confuso, não? Imagine isso graficamente em forma de algoritmo, assim que está.

Uma linha de investigação crítico-literária a seguir para aqueles que conhecem o idioma de Dante. A dedicatória do livro ao editor e amigo Daniele Ponchiroli (1924-1979) pode conter uma pista. Ponchiroli, também escritor, é autor de um romance infantil de título Le avventure di Barzamino, de 1965.  Nesse livro, o protagonista vive uma série de aventuras que não queria viver e está sempre tentando retornar à sua casa (como mencionado aqui). Uma espécie de Ulisses entediado, como o leitor de Se um viajante numa noite de inverno. Arriscam uma leitura, leitores?

 

Referência:

CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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