A Arte engajada e os escritores egoístas do nosso tempo

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Ao conviver em sociedade, a humanidade desenvolveu as muitas formas de enfrentar coletivamente inumeráveis desafios, dando respostas inteligentes a cada um deles, aprendendo também a dominar as linguagens para expressar tudo aquilo que desejava, como a literatura ou a linguagem escrita.

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Sei que a literatura não tem maiores pretensões, mas vale lembrarmo-nos de uma coisa: Paulo Leminski, com seu extenso reconhecimento como escritor, crítico literário, tradutor e professor, no ensaio Arte inútil, arte livre?, nos disse que a curiosa ideia de que a arte não está a serviço de nada a não ser de si mesma é relativamente recente. Embora se possa afirmar que a ideia da autonomia da arte radica, em última análise, na Poética de Aristóteles, é a partir dos finais do séc. XVIII que ela surge plenamente consciencializada. É melhor evidenciada, de fato, no romantismo europeu do século XIX, apogeu da 1ª Revolução Industrial e da hegemonia burguesa, momento em que a indústria veio para “substituir” a arte e o artesanato (LEMINSKI, 2012).
Mas, na Rússia, nos meados do século XIX, a literatura estava ainda no centro da arena dos grandes temas, da condição humana daquela época, daquele tempo. Fala-se muito da literatura ser amoral, mas, segundo Leminski, na grande Mãe Rússia, a extraordinária literatura do século XIX, com escritores como Gogol, Tolstói, Dostoiévski, Turguiênev e Tchékov, é uma literatura, sobretudo, moral. E a consciência social do povo russo é uma literatura de acusação e denúncia, de resistência e responsabilidade coletiva (LEMINSKI, 2012).
Se já lemos os grandes clássicos da literatura mundial, principalmente os russos como Tolstói e Dostoiévski, que por sinal, este é meu projeto de estudo na Universidade, o que Leminski nos aponta não é novidade.
Sim, a censura czarista estava de acordo com os artistas no que tange a arte com uma moral. Nisso, os poderes e a oposição estavam de acordo. Mas, os significados estavam trocados. Ao forçoso e forçado moralismo da censura czarista, os escritores russos reagiram com um moralismo oposto (LEMINSKI, 2012).
O grande momento reflexivo dessa afirmação russa do caráter moral da literatura é O que é Arte, do clássico escritor Tolstói (de 1898). Nesse ensaio implacável, o autor de Guerra e Paz denuncia a “degenerescência” da arte moderna, em particular, a doutrina da “arte pela arte”, à luz de critérios éticos e “humanos”. Para Tolstói, toda a arte e a literatura de sua época lhe parecem manifestações patológicas de sensibilidades decadentes e “desumanas”. Repugna-lhe também na literatura o seu “ocultismo”, sua tendência à “panelinhas” fechadas (LEMINSKI, 2012).
Chegamos ao revolucionário Plekhânov e a A Arte e a Vida Social, que são suas conferências de 1912. Plekhânov tem também a mesma postura anti-arte pela arte. O que em Tolstói era moral, em Plekhânov era político (LEMINSKI, 2012).
E não só na Rússia é que podemos constatar o engajamento artístico. Michel Winock, historiador, doutor em letras e ciências humanas, reúne relatos sobre as lutas que os homens de letras – Chateaubriand, Constant, Guizot, Madame de Staël, Victor Hugo, Stendhal, Balzac, George Sand, Michelet, Lamartine, Quinet, Renan, Flaubert, Maupassant, Zola, Vallès, entre outros – travaram contra o poder. De 1815 a 1885, seis regimes sucederam-se na França de forma estonteante – a breve ressurreição do Império, a Restauração, a Monarquia de Julho, a II República, o Segundo Império e a III República. Durante toda essa época, vários escritores envolveram-se na luta contra essa autoridade. Quaisquer que fossem o regime e suas tendências, eles sofreram na pele e no bolso pela coragem de assumir posições, expondo-se muitas vezes à prisão e ao exílio (WINOCK, 2006).
De certo que o mundo não é de responsabilidade só dos artistas, é claro, mas não nos esquecemos de suas forças na sociedade. É só nos lembrarmos de um fenômeno conhecido no mundo da literatura: o Copycat Effect, que é um ato que é modelado ou inspirado por um ato anterior descrita em ficção. Já o sociólogo David Phillips, chama isso de Werther Effect, se referindo ao romance do escritor Goethe que provocou uma onda de suicídios no século XVIII. No mais, é só para não nos esquecermos do século XIX e a sua arte (PHILLIPS, 1982).

werthers_todCena “Os Sofrimentos do Jovem Werther”

E mesmo que abordássemos filósofos e críticos de artes mais atuais, como Arthur Danto, de certo que até ele também não negaria essa visão descrita aqui. Para Danto, houve o início de uma nova era de pluralismo artístico, o que encontrou eco na diversidade da arte pós-moderna. Nisso, a arte, no que tange suas pretensões, não nega o século XIX e a moral artística. É uma questão de se utilizar delas também, quando necessário, e não de negá-las em detrimento de qualquer outra coisa (DANTO, 2014).
Arthur Danto, em sua obra A Transfiguração do Lugar-Comum, diferente do que muitos pensam sobre, afirma que a arte tem ainda seu papel social. Ela faz o que toda obra de arte sempre fez: exteriorizar uma maneira de ver o mundo, expressar o interior de um período cultural, oferecendo-se como espelho para flagrar a consciência dos nossos reis (DANTO, 2005).
Danto, ainda nessa obra, afirma que, além de questionar o conceito de Arte, artistas como Duchamp e principalmente Andy Warhol contestaram o consumo desenfreado e todas as hipocrisias que contornavam a sociedade norte-americana da época. Utilizava elementos, figuras e a própria estética popular em seus trabalhos, de maneira a fazer uma crítica direta e irônica da sociedade consumista que se formava. Mas não nos prenderemos em discutir esse caso em especifico da Pop Art e Arthur Danto, pois isso é só para demonstrar o quanto a arte sempre teve seu valor crítico social na nossa história, independente do sistema de crença da “Arte pela Arte” existir (DANTO, 2005).

danto-obitArthur Danto

O que se percebe é que “Arte pela Arte” sendo um sistema de crenças que defende a autonomia da arte, desligando-a de razões funcionais, pedagógicas ou morais e privilegiando apenas a Estética não viveu sozinha, mesmo no seu auge. Alguns artistas não acreditavam na verdade desse conceito célebre. É certo que alguns deles fizeram a sua arte em função da humanidade e da realidade. Shakespeare, por exemplo, foi um descortinador de toda a vida da Inglaterra de seu tempo. Então não passou ele de um teatrólogo vulgar, amado pelas massas, não aceito pelas elites? Não necessariamente (AMADO, 1935).
Esses artistas que tiveram o senso político, que olharam para a humanidade das ruas, dos botequins, das tavernas, dos campos, não tiveram o aplauso dos homens intelectuais de seu tempo, muitas vezes, porque não cabiam dentro do conceito de “Arte pela Arte” (AMADO, 1935).
Essa desumanização da literatura acima da vida, de colocar o artista à margem dos acontecimentos, dominou muito tempo o conceito de arte e ainda hoje gritam por ele todos os que querem combater a literatura interessada, como se hoje houvesse alguma literatura que não fosse interessada.
Como visto, se quisermos ir mais adiante, chegaremos com facilidade a negar por completo este conceito que colocava o artista acima do bem e do mal. A Literatura nunca deixou de servir a uma classe. O conceito que era fruto da vaidade dos intelectuais, que os colocava acima das competições humanas, foi sempre de uma falsidade desoladora. Os artistas, e em particular o escritor, nunca deixaram de servir a uma classe.
Deixando claro também que não estamos aqui definindo o que é arte ou o que é arte boa ou ruim e, de acordo com pensamento do filósofo Sartre, não defendemos um engajamento. Isso é impossível. O engajamento ocorre, queiramos ou não. Nossa ação nos define; nossa inação também. Calar-se diante da injustiça é endossá-la. Daí que a diferença não seja entre o político e o apolítico: este é uma impossibilidade. Tudo é de algum modo político. “Arte pela Arte” é também política.
No pluralismo artístico, dito por Danto, a “Arte pela Arte” não pode existir em detrimento da arte que questiona o social, a arte moral. O intelectual fora da humanidade, fora dos anseios, dos desejos, das lutas dos homens, não existiu absolutamente, porque a literatura existiu em função da humanidade (DANTO, 2005).
Não muito diferente, o escritor Monteiro Lobato (aqui com ressalvas) indaga sobre a escrita e a nossa posição em relação a ela. Para ele, há dois modos de escrever: um, é escrever com a ideia de não desagradar ou chocar ninguém; outro modo é dizer desassombradamente o que se pensa, dê onde der, haja o que houver – cadeia, forca, exílio.
O que esses pensadores querem dizer é que a “Arte pela Arte” não é uma verdade absoluta na história e única, e que podemos e devemos sair do comodismo, pois os governos suspeitam da literatura, porque é uma força que lhes escapa. A arte não pode ser censurada. Outrora, artistas usavam a própria arte para protestar contra a censura. Dizer que a arte não tem maiores pretensões, é, segundo o filósofo, o sociólogo e o compositor alemão Theodor W. Adorno, uma pretensão histórica ética de querer transformar a obra em mercadoria. É a industrial cultural em detrimento da arte do pensar, como disse a Escola de Frankfurt (ADORNO; HORKHEIMER, 2002).
Para Adorno, a grandeza da arte está em sua capacidade de resistir ao estatuto de mercadoria, em situar-se no mundo como um “objeto não identificado”. Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros e radicais, de uma “negatividade”. Ela é “a antítese da sociedade”. A antítese social da sociedade (ADORNO; HORKHEIMER, 2002).
Porém, hoje tiraram da literatura aquela importância, que se confundia com a filosofia, a sociologia, com grandes visões de mundo. Reforçaram uma espécie de “Arte pela Arte”. E isso nos vem levando à uma implicação tão séria.
Como é angustiante esse silêncio internacional sobre crimes de guerra em Gaza, por exemplo. No máximo um repúdio aqui e outro ali. Como se a Europa, tão vizinha, e os EUA não tivessem forças. Como se o mundo todo fosse impotente. Tanta politicagem em prejuízo da vida.
Atualmente, o mundo se acaba em guerras e os nossos escritores vivem como se nada acontecesse. E não se trata de uma visão pessoal e generalista, há exceções como há pesquisas que apontam isso.

A Palestinian woman carries her baby through the rubble of buildingsFaixa de Gaza – mãe segurando o seu bebê a procura de abrigo

André Forastieri, jornalista e crítico de cinema, afirmou, por exemplo, que o assunto da literatura brasileira é o escritor brasileiro e seu mundinho. É um coroa diletante e seu tema é a própria juventude e a meia-idade, reimaginadas dramaticamente (FORASTIERI, 2013). Sinceramente, desconfiei dele, mas, André Forastieri não assegura isso à toa, já que o que é dito aqui é o resumo curto e grosso da pesquisa feita pela professora Drª. Regina Dalcastagnè, da UNB.
Não queremos saber dos problemas dos senhores letrados de classe média e meia-idade, suas neurinhas, fantasias e infidelidades. Simplesmente não é tão interessante assim. Em todo lugar o gênero “problemas sexuais-existenciais da classe média intelectualizada” tem longa tradição. É um gênero, como livros de vampiro ou histórias de detetive (FORASTIERI, 2013).
O que se percebe é que escrever sobre a realidade não é escrever sobre a minha vida. A pesquisadora Drª. Regina Dalcastagnè explicita que o assunto central da ficção brasileira é o umbigo do seu autor. Não é um problema localizado. Em todo lugar, cada vez mais os escritores estão caraminholando sobre seu mundinho particular, reciclando fantasias de aventura e consumo, revisitando seus livros e filmes e ícones culturais prediletos. A possibilidade de celebridade propiciada pelas redes sociais acentua a tendência. Vivemos escrevendo e lendo devaneios narcisistas (DALCASTAGNÈ, 2008).
Ironicamente, André Forastieri exprime que boa parte do que passa por literatura é tão verdadeira quanto essas fotos supostamente displicentes, mas cuidadosamente planejadas e retocadas, que colocamos em nossos perfis no Facebook (FORASTIERI, 2013).
A ambição da ficção, e da ficção brasileira, pode e deve ser maior. Hammett estava errado, já que a literatura que importa não é sobre o autor, é sobre o leitor; se quer, se exige, um livro que nos hipnotize e nos leve para outro lugar, e para dentro de nós mesmos. O que importa em ficção é fitar o desconhecido. E não conseguir desviar o olhar (FORASTIERI, 2013).
Como proferia o grande escritor Ernesto Sabato, vencedor do Prêmio Cervantes de Literatura e um dos maiores autores argentinos do século XX: “É característico de um bom romance que nos arraste para seu mundo, que nele mergulhemos, que nos afastemos a ponto de esquecer a realidade. E, não obstante, ele é uma revelação sobre a mesma realidade que nos rodeia” (SABATO, p. 168, 2003).
Usando-se do pensamento do clássico escritor Kafka, se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos.
O mundo depende muito dos verdadeiros artistas, não só deles, mas dos subversivos em geral. Felizmente, como pronunciou o grande escritor Ernesto Sabato, o verdadeiro artista continua lá e graças a sua incapacidade de adaptação, a sua loucura, conservou contraditoriamente os atributos mais preciosos do ser humano (SABATO, 2003).
 
REFERÊNCIAS
LEMINSKI, PAULO. Ensaios e anseios crípticos. São Paulo: UNICAMP, 2012.
WINOCK, MICHAEL. As Vozes da Liberdade: Os Escritores Engajados do Século XIX. São Paulo: BERTRAND BRASIL, 2006.
PHILLIPS, DAVID. (May 1982). The Impact of Fictional Television Stories on U.S. Adult Fatalities: New Evidence on the Effect of the Mass Media on Violence. The American Journal of Sociology 87 (6): 1340–59. 10.1086/227596. 1982.
DANTO, ARTHUR C. O descredenciamento filosófico da arte. São Paulo: Autêntica, 2014.
DANTO, ARTHUR C. A Transfiguração do Lugar-Comum. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
AMADO, JORGE. A farsa da “Arte pela Arte”. O Estado de Sergipe. Ano III – Nº 773, 1935.
ADORNO, THEODOR; HORKHEIMER, MAX. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação das massas. In: Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
FORASTIERI, ANDRÉ. Por que escrever (ou: o escritor brasileiro, esse chato). Disponível em: http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2013/02/20/por-que-escrever-ou-o-escritor-brasileiro-esse-chato/. Acesso em: 28 de Julho. 2002.
DALCASTAGNÈ, REGINA. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 31. Universidade de Brasília – UNB. Brasília, janeiro-junho de 2008, pp. 87-110.
SABATO, ERNESTO. O escritor e seus fantasmas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 168.

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Marcelo Vinicius é escritor e fotógrafo, autor do livro "Minha Querida Aline" (Editora Multifoco). Colunista do portal Homo Literatus e editor da Revista Sísifo. É amante da arte, especialmente a fotografia, o cinema e a literatura. Graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na qual faz parte da equipe editorial da revista de Filosofia IDEAÇÃO-UEFS, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEF); é integrante do grupo de estudos em Filosofia da Arte e do grupo de pesquisas em Filosofia Contemporânea na UEFS. É certificado pelo curso de fotografia do Cento Universitário de Cultura e Arte (CUCA) e teve suas fotografias selecionadas por diversos festivais. Participou de jornais regionais, do projeto de extensão sobre cinema e produção de subjetividade e do projeto de Psicologia Social na UEFS. Foi responsável também por coordenar projetos acadêmicos sobre os escritores Franz Kafka e Fiódor Dostoiévski, ainda co-coordenou projetos sobre os cineastas Bergman e Hitchcock e apresentou o tema “A relação entre o escritor Dostoiévski e o cineasta Hitchcock em Festim Diabólico”, na II Mostra 100 Anos de Cinema: Alfred Hitchcock.

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