O brutal e sensível Mãos de Cavalo, de Daniel Galera – Vilto Reis

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Se fosse realizada uma pesquisa sobre o título do livro, questionando sobre qual a origem do autor; uns sete em cada dez brasileiros, minimamente conscientes, afirmariam que Galera é gaúcho, apenas a partir do título. O fato é que ele nasceu em São Paulo, mas viveu quase a vida toda no Rio Grande do Sul, o que fica evidente em seus textos.

Mãos de Cavalo tem uma abertura estonteante intitulada “O ciclista urbano”, na qual é narrada em pormenores a aventura de um garoto de dez anos, descendo uma complexa avenida em mais um dos seus momentos de infância. A partir daí, começa a intercalação de planos proposta por Galera, pois o capítulo seguinte traz o protagonista já adulto, um cirurgião plástico que sai de casa cedo, rumo a uma aventura de escalada num pico localizado na Bolívia. Seu instrutor de academia, Renan, havia feito a proposta meses antes, um desafio, já que o local nunca havia sido escalado, uma subida na neve. As perspectivas vão se alterando e se recombinando em planos, alternando entre a infância/adolescência do rapaz e a vida adulta.

maos-de-cavaloO título do livro é o apelido da adolescência do rapaz, nos tempos em que andava com os amigos do bairro, da Explanada; vivendo uma época que parece nunca acabar, com o livro passeando por lembranças do personagem, uma vivência de nostalgia em contraste com a vida adulta dele, enquanto dirige sua Pajero rumo à casa de Renan. Quando mais novo, o protagonista passava boa parte do tempo andando de bicicleta, jogando futebol, embora não gostasse muito, e baixando os olhos quando intimidado. Era alto e forte, como o apelido sugere, mas se sentia intimidado pelos outros. Parte desta intimidação nasce de uma das cenas iniciais do livro, em que ele como zagueiro atinge diretamente, sem prezar a bola, o corpo de Bonobo, um dos rapazes do bairro, dos mais violentos. A tensão cresce, mas ele abaixa os olhos, não tem coragem de encarar o confronto.

Já adulto, ele lida com outros problemas, com outras tensões, mas até que ponto as coisas estão relacionados com a adolescência é uma pergunta que permeia o livro. Sua esposa, Adri, é uma artista que abandonou a arte, como faz de tempos em tempos com seus interesses, atitude que desperta no protagonista a pergunta se ela não fará o mesmo com ele. Muito embora, o que os mantêm juntos seja a filha do casal, de dois anos, Nara.

Em sua profissão, o personagem é um cirurgião plástico bem sucedido, com uma carteira de clientes pequena, mas fiel, o que lhe garante uma estabilidade financeira. Apesar disso, com o passar do livro, fica evidente sua opinião em relação à profissão, como na página 129: “Julgava excessivas as intervenções que homens e mulheres faziam e refaziam buscando a aproximação de modelos de beleza cujo valor lhe parecia duvidoso”. A sensação de insatisfação com o que se tornou é constante, impulsionando uma série de perguntas sobre a vida, embora a sensação de que não há muito o que fazer, de não importa a decisão que se toma, não se conseguirá alterar os fatos, o livro consegue não se deixar ser opressivo, mas mantém o clima de tensão, brutal e sensível, o tempo todo.

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“[…] tão imerso naquela distorção heroica da realidade que vivia experimentando a realidade de fato como se fosse uma pausa dentro de uma existência em que a fantasia era a regra”. (pg. 154).

“A fantasia heroica está se esvaindo, mas a imagem que tem de si mesmo na realidade não preenche os espaços vazios deixados pela fantasia”. (pg. 156).

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Mãos de Cavalo traz um sentido de desnecessidade de que se haja um fim ou começo. Lê-lo é como tomar uma dose  forte, mas real, de vida; por mais que seu realismo não seja assim tão fiel à realidade – se é que ela existe, repito incansavelmente. Talvez seu único defeito é ser curto demais.

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