Watchmen e a literatura (?) em quadrinhos

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Quis custodiet ipsos custodes?
(Juvenal, Sátiras, VI, 347)

A QUESTÃO

Juvenal, autor romano do primeiro século d.C., certa vez fez uma sátira aos homens que colocavam vigilantes com suas mulheres para garantir suas virgindades. Questionou e ratificou: “Quem vigia os vigilantes? A esposa se antecipa e começa com eles!”. Essa questão do filósofo é levantada novamente na obra escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons, quando é pichada diversas vezes nos muros da cidade de Nova Iorque ao longo de toda a História em Quadrinhos (HQ) Watchmen e lança a pergunta para a sociedade (vinda dela mesma) – se os vigilantes protegem a população, quem poderia protegê-los? Ou, ainda melhor, quem teria a habilidade de vigiar esses vigilantes e por que eles não necessitam desta vigilância? É uma crítica social? É da Era de Ouro dos quadrinhos? É da Era de Prata? É ficção científica? É realidade? É político? É uma graphic novel? É uma obra literária? A resposta para todas estas perguntas é: sim. Porém, acima de tudo isso, Watchmen é a desconstrução dos super-heróis. Como seria o mundo se um bando de gente resolvesse vestir fantasias e sair por aí fazendo justiça com as próprias mãos? Que efeitos a existência desses vigilantes teria em campos políticos e comportamentais? E mais, e se existisse realmente um ser superpoderoso, será que a presença dele seria capaz de mudar o rumo da História como a conhecemos?

Watchmen – também conhecida como a obra-prima definitiva sobre super-heróis – é um dos mais importantes trabalhos de Moore e seu parceiro Gibbons. A saga dos não-heróis na graphic novel é aclamada desde seu lançamento no fim dos anos 80 e discutida até o momento (virou, inclusive, uma versão pífia no cinema em 2009, mesmo ancorada em farta propaganda entusiasta). Críticos dos quadrinhos e literatura, leitores, todo o tipo de website que trabalha com entretenimento comenta e analisa os quadrinhos sobre um universo paralelo onde existe uma América mais sombria e infestada de vigilantes contra a violência urbana. Watchmen é um sucesso de crítica e vendagem: reunindo-se as 12 revistas que compõem a história, foram vendidos mais de 390 mil exemplares – números baixos para os padrões atuais, mas bem altos para os anos de 86/87 – a divisão em doze capítulos/partes/revistas, inclusive, é a primeira referência ao tempo (e à figura emblemática do relógio), que vai se esgotando até o final – surpreendente –, que não será contado aqui, acreditando que o bom leitor do Homo Literatus prefira ir direto na fonte (se já não o foi) após acompanhar resenhas/artigos neste sítio.

A obra é a única graphic novel listada na Times dos 100 melhores romances desde 1923. Em contrapartida, há quem acredite que o trabalho não seja tão magnífico assim; para alguns existe uma supervalorização pela mídia em geral; que mesmo sendo boa, não deveria haver comparações com outras obras clássicas. Contudo, o sucesso editorial, de crítica e de público é uma das motivações que move esta análise da HQ; a temática política também desperta o interesse – assim como as referências a tantas outras obras de super-heróis. Ainda há o fato de Watchmen ser uma graphic novel praticamente metalinguística (heróis falam sobre como é ser herói; quadrinhos comentam como quadrinhos motivam outras pessoas), sendo fator chave para questionar se tal trabalho artístico dito menor (dentre vários outros) pode ser considerado também literatura em seu mais alto grau.

Para uma análise literária não existe um roteiro a ser seguido; isso se deve pela ausência de até mesmo uma definição objetiva do que chega a ser literatura e por ser um material de trabalho subjetivo e de cunho, à primeira instância, somente artístico/gráfico e de entretenimento. Porém, a análise aqui feita ultrapassa um comentário sobre o texto exposto; é, em verdade, a abertura para uma análise crítica do conteúdo e do contexto histórico em que a obra se insere – irá observar que, apesar do mensageiro (história em quadrinhos) não ser comumente visto como literatura, nunca deveremos confundir a mensagem (Watchmen) e julgá-la como não-literatura, haja vista o que foi produzido pelo primeiro.

O ENREDO

A história se divide em duas gerações de vigilantes: os Homens-Minuto (contraponto irônico, segundo narra o próprio Moore no material adicional da edição brasileira definitiva, ao título do trabalho na sua composição – espécie de aglutinação das palavras inglesas watch, relógio e men, homem), grupo fundado em 1939, os quais foram os pioneiros no vigilantismo, e um segundo grupo de vigilantes, os Combatentes do Crime, que se reuniram no ano de 1966, mas nunca foram um grupo de fato como o da primeira geração. Em Watchmen o foco é na segunda geração, as informações sobre os Homens-Minuto são todas do ponto de vista do Coruja I em sua biografia “Sob o capuz”, que conta sua trajetória no mundo dos vigilantes. Esse livro é visto em trechos publicados ao final de cada volume das três primeiras revistas (já demonstrando que não pode ser vista apenas como uma graphic novel, mas sim como algo mais complexo e completo, como uma boa obra literária). No primeiro capítulo de “Sob o capuz”, Hollis Manson (o Coruja I) comenta como a ação do vigilante pioneiro, Justiça Encapuzada, despertou nele o desejo de combater o crime desta forma diferente. Manson lê uma reportagem que conta o ato heroico de um homem encapuzado numa ação contra ladrões que iriam roubar um casal de namorados e acredita que foi o que trouxe os quadrinhos da Action Comics à vida. E é naquele momento que Hollis Manson acha sua vocação. Não só Coruja I inspira-se nesse vigilante – seus parceiros como Capitão Metrópole, Dollar Bill, Silhouette, Traça, Espectral I e Comediante inspiram-se na ação do vigilante ou leram um anúncio no jornal que clama por novos heróis mascarados. Coruja I é o maior representante dos Homens-Minuto por ser o mais expressivo do grupo – tanto na questão de influência dele dentre seus colegas mascarados quanto à presença na graphic novel. Além de ser, juntamente com Espectral I, o único Homem-Minuto a ter relevância na história dos novos vigilantes, ele é o porta-voz dos mascarados da geração de 40. Com ideais de justiça puros de um policial recém-formado, inspira-se em seus heróis das histórias em quadrinhos (como o Super-Homem) e decide se tornar o segundo vigilante mascarado em Nova Iorque. Sua autobiografia faz parecer que ele se tornou um super-herói porque “era divertido, porque precisava ser feito e porque achava que tinha o que precisava para a coisa” (Cap. 1, material complementar, p. 5). O primeiro Coruja, mesmo que comprometido com sua nova vocação, não parece ter criado uma nova persona, mas sim uma extensão do seu eu-policial motivado pela moralidade, valores e crenças passadas por seu pai.

O pioneiro dos vigilantes, Justiça Encapuzada, é o mais antigo e mais misterioso dos Homens-Minuto. Sua identidade nunca fora revelada, tampouco seu destino após o fim do grupo de heróis. Sua sexualidade é questionada ao longo de sua carreira; num primeiro momento, imaginava-se que ele e Sally (Espectral I) tivessem um romance, que teria começado numa festa de Natal dos Homens-Minuto. Porém, em “Sob o capuz”, Hollis Manson insinua o fato de que ela estaria muito mais interessada nele do que o contrário. Seu homossexualismo (e sadomasoquismo) seria enfim revelado em uma carta de Laurance, agente da Espectral I, para esta sobre o dilema que “Nelly” (Nelson Gardner, o Capitão Metrópole) e “JE” (Justiça Encapuzada, provavelmente) estavam passando. O agente conta para Espectral I que o casal se comporta como dois velhos casados há muito tempo e que estaria sendo difícil para “Nelly” saber lidar com as saídas de “JE” à noite com meninos, ocorrendo coisas violentas entre eles (Cap. 9, material complementar, p. 3). O que dá margem ao comentário de Edward Blake (o Comediante) em uma briga entre eles em que o Justiça Encapuzada defende Sally Jupiter de uma tentativa de estupro de Eddie; após levar um soco dele, o Comediante diz “é disso que você gosta, né? É o que te dá tesão…” (Cap. 2, p.7). Após o ocorrido, enquanto a vigilante está no chão sangrando, a resposta do Justiça Encapuzada é fria e decepcionante, pois não se espera uma posição tão crítica de alguém que vive numa luta interna por sua orientação sexual – ele vira-se para Espectral I e diz “levante-se…e, pelo amor de Deus, cubra-se”.

A ideia de formar um grupo para combater o crime de forma mais eficaz veio do Capitão Metrópole que o tenta em 66 novamente, sem sucesso. O vigilante é um ex-Tenente da Marinha e tem como nome real Nelson Gardner. Sally Jupiter (Espectral I) chega a deixar subentendido que ele fosse gay e tivesse um caso com outro vigilante, possivelmente o Justiça Encapuzada, mas isso não é confirmado, mesmo com a evidência acima indicada. A justiceira comenta que “não tinha só ela [Silhouette] de gay nos Homens-Minuto (…) Eu não vou dar nomes. Eram dois caras, que hoje estão mortos. Um deles morreu recentemente” (Cap. 9, material complementar, p. 4). Seu fim é anunciado na obra por Rorscharch – “Capitão Metrópole foi decapitado num acidente de carro em 1974” (Cap. 1, p. 19). A inspiração para seu personagem parecem ser os heróis, de uma forma geral, da Era de Prata dos quadrinhos – com uma filosofia de combater o mal pelo simples motivo de que é o certo a ser feito. Em flashback visto no Capítulo 2, ao fim de uma fracassada reunião dos Combatentes do Crime, o vigilante implora para que os colegas não desistam; “Alguém tem que fazer alguma coisa. Alguém tem que salvar o mundo…” (Cap. 2, p. 11), curiosamente (ou propositalmente) o quadro se fixa em Ozymandias, uma indicação do que será analisado adiante.

Dollar Bill nunca teve uma única fala em toda graphic novel, mas tem uma das mais curiosas histórias da razão porque virou um vigilante. Após tempos desempregado em Nova Iorque, o conglomerado de marketing de um banco o contrata ao perceber a nova moda do vigilantismo que havia – eles acreditavam que, com um super-herói assegurando a segurança do dinheiro de seus clientes, muitos novos apareceriam. Sua história é contada por Hollis Manson em “Sob o capuz” – o primeiro Coruja comenta que seu destino trágico (morreu assassinado após ter ficado com a capa presa na porta giratória do banco) poderia ter sido evitado se ele mesmo tivesse feito sua fantasia, e não tivesse sido um brinquedo na mão do marqueteiro bancário. Ele ainda diz que “Dollar Bill foi um dos homens mais bondosos e honestos que já conheci” (Cap. 2, material complementar, p. 2). Silhouette foi a terceira mascarada e a primeira mulher a fazer parte do grupo de vigilantes. Sua vida antes do vigilantismo é desconhecida; porém, é de conhecimento público sua opção sexual como homossexual e como fora isso que causou sua morte. Antes de morrer, ela foi expulsa dos Homens-Minuto após ter comentando sobre sua homossexualidade. Sua aposentadoria foi “em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança” (Cap. 1, p. 25). A ironia em sua história reside na razão pela qual foi expulsa dos Homens-Minuto: mesmo havendo outros dois homossexuais (e segundo Espectral I, todos terem noção disso), a única a ser expulsa foi ela – retrato de uma sociedade preconceituosa com o lesbianismo nos anos 40/50.

Traça foi um dos três Homens-Minuto que continuou vivo após o fim do grupo. De acordo com “Sob o capuz”, o Traça era um jovem que tinha dinheiro, que lutava contra o crime para dar uma apimentada em sua vida. Após passar por problemas com o álcool por muito tempo, Traça finalmente é internado em um sanatório no Maine, no ano de 1962, de acordo com Rorschach. Espectral I é a segunda mulher a entrar para o grupo de vigilantes. Sua importância para a obra de Moore é grande – além de ser a voz feminina na HQ, é também a mãe da segunda Espectral e personagem principal de uma das mais polêmicas cenas nos quadrinhos. Sally Juspeczyk foi, acima de tudo, um símbolo sexual, o que fazia os vilões e criminosos não ficarem irritados quando capturados por ela; sua fantasia, claramente inspirada em pin-ups gerou uma série de material publicitário em torno de sua imagem – isqueiros, filmes (rejeitados) e até mesmo histórias pornôs usando sua imagem. A heroína, porém, não se importava com a imagem sexualizada. Quando questionada pela filha sobre esse material (em especial o pornográfico), Sally diz que não se incomoda e se sente lisonjeada por lembrarem dela como um símbolo sexual depois de tantos anos. Ainda comenta que “(…) eu tenho 65 anos. A cada dia, o futuro parece mais sombrio, mas o passado, mesmo as piores partes…bom, ele vai ficando cada vez mais e mais brilhante” (Cap. 2, p. 4). A sexualidade da Espectral I é uma das questões levantadas logo no inicio da graphic novel. Acontece, numa das reuniões de publicidade dos Homens-Minuto, da heroína se ausentar do recinto para trocar de roupa em outra sala. Ela logo é abordada por Edward Blake que faz insinuações sexuais (tais como ela estar vestida com roupas de heroína sensuais ser um sinal de que era isso que ela queria), as quais ela despreza e arranha seu rosto. Como resposta, o Comediante bate na justiceira e chega a quase estuprá-la até o Justiça Encapuzada encontrá-los e salvá-la. Os homens da situação têm uma percepção machista do estupro, de que a mulher é a responsável – uma lógica deturpada, pois sugere que o estilo de roupa valesse mais que a habilidade verbal e racional dessas mulheres, o que lembra bastante a discussão recente sobre o trajar feminino induzir ou não ações molestadoras masculinas. A própria heroína, em entrevista para uma revista – lembrando muito as da Playboy – parece ter internalizado essa opinião (que fora repetida diversas vezes): “Estupro é estupro e não há desculpas pra isso. Não mesmo, mas pra mim, eu sinto…sinto que, de alguma forma, eu contribuí pra isso. Será que isso é culpa indevida ou qualquer outra coisa que meu analista disse? Eu realmente sinto assim, que, de alguma forma, tive culpa por…por me deixar ser vítima dele, não no sentido físico, mas…mas é como se…deixa ver…como se, por um momento, talvez eu realmente quisesse…quer dizer, isso não é desculpa pra ele, não é desculpa pra ninguém, mas com toda essa dúvida, o desfecho que a coisa teve, eu não posso ficar brava quando não tenho certeza sobre meus próprios sentimentos…” (Cap. 9, material complementar, p. 4).

O último vigilante dessa geração a ser comentado, mas que também participou da próxima, é o Comediante, uma personagem emblemática que percorre o arco de história pelo menos de todas as personagens uma vez. Sua morte no começo de Watchmen é o estopim da narrativa. Ao descobrir que o Comediante fora assassinado em seu apartamento (atirado da janela), Rorscharch então começa uma busca pelos antigos vigilantes para avisá-los sobre um possível “assassino de antigos mascarados”. O Comediante é uma personagem única na HQ – todos os demais personagens sabem de sua imoralidade e sanidade questionável (ocorrendo exemplos em diversos momentos, como quando mata em uma mulher grávida de um filho seu, desfiando-se sua psicopatia). Mesmo com traços de psicopata e uma personalidade claramente violenta demais para qualquer espécie de herói a ser admirável, ele e o Dr. Manhattan são os únicos que permanecem depois da Lei instituída para deter o vigilantismo. Um personagem sem objetivos puros, que coloca uma máscara e se diz herói como desculpa para cometer crimes brutais sem ser punido pela lei – esse é o Comediante. Sua real identidade nunca é relevada para a sociedade, até mesmo depois de sua morte. Com isso, totalizam-se seis vigilantes da primeira geração que seria conhecida como os Homens-Minuto de Nova Iorque. A existência de heróis muda o panorama histórico-cultural do mundo – logo, Watchmen é um simulacro em que vigilantes ocupam uma cidade e isso altera seu estilo de vida. Num universo em que existem heróis reais e sua histórias estampam as manchetes dos jornais, os quadrinhos não ilustram super-seres depois do início deles em Nova Iorque. Prefere-se a temática pirata, vista diversas vezes n’Os Contos do Cargueiro Negro, a história dentro da história de Watchmen. Além desta, outras alterações são feitas na realidade conhecida: com a ajuda dos vigilantes, Nixon consegue vencer a Guerra do Vietnã e consequentemente se reelege nos Estados Unidos. O ponto de divergência entre nossa realidade e o universo Watchmen ocorre, mais precisamente, no ano de 1939, marco em que o primeiro justiceiro mascarado faz sua aparição pública. Com a queda de cada um dos antigos vigilantes, a “moda” do vigilantismo decai até o surgimento do primeiro (e único) real super-ser em Watchmen: Dr. Manhattan. Com seu surgimento, o homem com poderes subatômicos vê-se, provavelmente, um dos mais poderosos super-heróis já criados: pode ver o passado, o presente e o futuro; pode dividir-se em diversos fragmentos; pode estar em dois locais ao mesmo tempo; mas ainda sim, não pode fazer nada contra suas questões filosóficas. Assim como todas as outras personagens na obra, Dr. Manhattan também é uma confusão de sentimentos.

Dr. Manhattan é a alcunha dada a Jon Osterman, físico formado em Princeton, filho de um relojoeiro. Seu sonho nunca foi ser um físico – mas seu pai, ao ver que uma bomba atômica foi jogada em Hiroshima e descobrir a teoria de Einstein sobre o tempo se diferir de local a local, passa a acreditar que a profissão de relojoeiro está morta. Segundo o Sr. Osterman “se o tempo não é real, de que valem os relojoeiros? Minha profissão é coisa do passado. Meu filho precisa ter um futuro.” (Cap. 4, p. 3) Com isso, Jon forma-se e vai trabalhar num laboratório – seu PhD em Física Atômica o ajuda a conseguir o trabalho. Lá, conhece Janey Slater, e começa um namoro com ela – que mudará seu destino. Ao saírem certa vez para um parque, o relógio dela é quebrado e ele assegura que pode consertá-lo e entregar a ela no dia seguinte. Ele acaba por esquecer o relógio em seu jaleco que está dentro da cabine de testes e, acidentalmente, fica preso lá – e a cabine não pode ser reaberta. E nela “a luz está me fazendo em pedaços” (cap. 4, p. 8). Meses depois, Jon reaparece – desta vez, totalmente nu e azul, flutuando no meio da cafeteria do laboratório – era a primeira aparição do Dr. Manhattan.

Por ter passado por tantas mudanças, Dr. Manhattan não se encaixa no mundo em que vive – não se vê como humano, tampouco como Deus. Após a TV americana tê-lo usado como ameaça bélica contra a URSS com a emblemática frase “Repetimos: O Superman existe, e ele é americano” (Cap. 4, p. 13), suas relações com as outras pessoas alteram-se drasticamente. Sua namorada entra em conflito por ninguém na Terra (nem mesmo o próprio) saber o que é o Dr. Manhattan de fato, muitos o comparando com um Deus; sobre isso, o super-herói comenta: “Não creio que exista um deus, Janey. Se existe, eu não sou ele.” (Cap. 4, p. 11). A imagem de Manhattan é utilizada exaustivamente pelo governo americano, um dos motivos que o fazem cansar-se da Terra. Com o único super-herói do mundo em mãos, o mandam para a Guerra do Vietnã juntamente com o Comediante; é convocado a diversas festas, é chamado de “combatente do crime” pela TV; ajuda a conter uma rebelião em Nova Iorque em 77; tiram fotos promocionais, criam um nome para que seja lembrado ser ele americano e que deve ser temido. Em seu monólogo interno desabafa que “eles explicam que o nome foi escolhido pelas imagens agourentas que despertará nos inimigos da América. Estão me transformando em algo vistoso e letal… Tudo está fugindo de minhas mãos” (Cap. 4, p. 12).

Essa falta de aceitação faz com que o super-ser passe metade da trama na Terra e a outra metade em Marte, como visto em seu solilóquio no capítulo 4 da graphic novel, em que se observa sua dor e confusão com a falta de aceitação (e pressão) posta sobre ele ao longo de sua história: “Sem mim, as coisas teriam sido diferentes. Se o gordo não tivesse esmagado o relógio, se eu não o tivesse deixado na câmara…Sou eu o culpado, então? Ou o gordo? Ou o meu pai por escolher minha carreira? Qual de nós é responsável? (…) Mas é tarde demais, sempre foi, sempre será tarde demais” (Cap.4, pp. 27 e 28).

Como fora dito, diferentemente de Dr. Manhattan, os outros vigilantes de “super” dos super-heróis clássico não têm nada. Porém, são personagens complexas que refletem uma série de estereótipos de personalidades de outros heróis, misturados às muitas mazelas humanas.

Um dos exemplos de inspiração de outro herói é o Coruja II, o herdeiro de um banqueiro aficionado por quadrinhos e Mitologia. Dan Dreiberg é um cara ordinário em um mundo extraordinário, fazendo o bem sem se arruinar no processo. Por ser um homem rico que faz o bem numa cidade urbana, percebe-se uma forte ligação (intencional?) com o herói clássico da Era de Ouro, Batman, também herdeiro de uma fortuna deixada por seus pais após a morte deles. Além disso, seu uniforme e forma de atacar também relembram o Cavaleiro das Trevas – Dreiberg é conhecido por ter sido o vigilante que mais tinha acessórios para ajudá-lo a combater o crime e um cinto de utilidades idêntico ao de Batman; a escolha de animais representativos como a coruja e o morcego demonstram claramente a semelhança entre ambos – os dois são noturnos e trazem uma aura soturna. Coruja II mostra-se como o mais equilibrado e humano dos vigilantes; seus ideais de justiça relembram os heróis da Era de Prata – já que ele mesmo inspira-se no antigo Coruja dos Homens-Minuto, que tem uma visão de certo e errado, preto-no-branco. Dan é o meio termo entre dois extremos, tornando-o virtuoso aos olhos até mesmo da teoria de Aristóteles. Sua história de vida é, basicamente, voltada para quando ele se tornou um vigilante. Ainda assim, ele se solidifica no melhor exemplo de comportamento ou exemplo moral, sendo corajoso, mas não imprudente, fiel a seus amigos, mas não a ponto de ser servil. O vigilante vive a mais próspera e plena vida dos heróis do HQ, mesmo com seu questionamento sobre o quão válido foi aposentar-se do vigilantismo após a lei contra os mascarados. Outra questão levantada sobre o Coruja II envolve outra personagem – Laurie Juspeczyk, a vigilante conhecida como Espectral II.

Filha da primeira Espectral, a moça nunca fora fã do heroísmo e combate ao crime – seguiu a carreira para agradar a mãe. Logo, Laurie assume um legado materno e não entende quais são as consequências disso. Uma escolha que leva a heroína a uma vida esvaziada, já que era o caminho mais claro e óbvio a tomar. Em Watchmen, vemos Espectral II ser submissa à vida da mãe diversas vezes; Laurie admite, quando adulta, que ser uma vigilante nunca foi sua escolha. Seu questionamento filosófico na obra é o que ela fez de sua existência, arrependendo-se: “É que eu vivo pensando: ‘Tenho trinta e cinco anos e o que foi que eu fiz?’ Passei oito semi-inativa e, antes disso, dez andando por aí numa fantasia idiota porque minha mãe cretina queria assim. Lembra do uniforme?” (Cap. 1, p. 25).

A Espectral II é uma personagem que vive sobre os olhos da dicotomia ser-o-que- outros-querem-que-ela-seja e o-que-ela-deseja-ser. Sua vida é pautada no que a mãe deseja ou o que Dr. Manhattan precisa para ser feliz (já que o governo a mantém com uma mesada para que Osterman não fuja da Terra). Se Laurie Juspeczyk não é uma heroína clássica e seus objetivos foram traçados por um terceiro (no caso, sua mãe), o mesmo não acontece com Ozymandias – nome real Adrian Veidt, multimilionário conhecido por fazer da sua persona como vigilante mais rico do que já era. Convenientemente, revela sua identidade dois anos antes da lei que vai contra o vigilantismo; no emblemático diálogo com Rorschach, Veidt é confrontado por este quanto a suas opções de vida, após Ozymandias ter comentado que o Comediante era praticamente um nazista: “Blake lutava por seu país, Veidt. Nunca se deixou aposentar. Nunca lucrou com sua reputação. Nunca montou uma empresa pra vender pôsteres, dietas e brinquedos baseados em si mesmo. Nunca se deixou prostituir. Se isso faz dele um nazista, pode me incluir também” (Cap. 1, p. 17).

Num primeiro contato, o leitor chega a acreditar que Ozymandias é somente um ex-vigilante fútil que buscava a fama. Após uma série de acontecimentos, chega-se a outra conclusão: Adrian Veidt é um homem ambicioso com a obsessão de consertar o mundo por acreditar que é o único capaz de fazer isso. Crente de que é, como todos clamam e chamam, o homem mais inteligente do mundo, inspira-se em Alexandre, o Grande. O personagem demonstra ser um homem megalomaníaco, que quer emular Alexandre, o antigo conquistador que governou quase todo o mundo “sem barbarismo”. Veidt usa seu intelecto e seu dinheiro para bolar um plano que ele acredita que salvará o mundo – unindo-o contra um mal em comum. Ozymandias (como é pouco chamado na graphic novel – seu nome parece ser muito mais forte) acredita que, para um bem maior, pessoas podem (e devem) morrer no processo. Para isso, ele mesmo chega a envenenar todas as pessoas que o ajudaram em sua utopia. Sua consciência, porém, não é limpa. Numa conversa com Dr. Manhattan, o vigilante confessa que “me fiz sentir cada morte. De dia, imagino inúmeras faces. De noite…” (Cap. 12, p. 27). Com Ozymandias (e Rorschach, sob outro prisma) vemos como todo e qualquer poder – independente de ser de esquerda ou direita – pode ser corrompido. Isso tira então a máscara usada pelo ex-vigilante de que é o homem mais esperto e poderoso do mundo e nos leva à outra faceta de Adrian – um obcecado em consertar um mundo em que não há concerto, e essa obsessão não é virtuosa, pois não há prosperidade nela.

Acima de todas estas personagens supracitadas está Rorschach – um dos principais personagens e narrador (por meio de seu solilóquio feito em seu diário) da graphic novel. Usa uma máscara com o teste psicológico no rosto e tem uma série de traumas infantis, cria uma ideologia de nunca se entregar pois “existe o bem e existe o mal. O mal deve ser punido. Mesmo no Dia do Juízo Final isso não vai mudar” (Cap.1, p. 24) numa clara referencia aos super-heróis da Era de Prata e o heroísmo maniqueísta. Rorschach despreza seu nome real e não atende quando chamado por ele – sua identidade é a última a ser revelada entre todos os vigilantes. Ele encara a máscara como “(…) meu rosto, dobrei-o e guardei no casaco. Sem a face ninguém me conhece. Ninguém sabe quem sou” (Cap.5, p. 11). Um homem claramente psicótico, seu perfil é o mais intrigante de todos os personagens. Enquanto vemos uma série de personagens problemáticas e com traumas de vida “leves”, o mesmo não acontece com Rorschach. Diferente dos demais, o que ele foi reflete fortemente no que ele se tornou. Filho de uma prostituta e que nunca conheceu o pai, apanhava e via frequentemente sua mãe tendo relações sexuais com diversos homens na casa onde morava. Numa dessas ocasiões, sua mãe o vê; o homem com quem ela estava sai, pagando-a apenas com cinco dólares, e ainda afirma que foi mais do que a mulher merecia. Depois disso, a mãe de Rorschach – verdadeiro nome, Walter Kovacs – dá um tapa em seu rosto seguido das frases “você faz ideia do quanto me custou, seu moleque? Eu devia ter ouvido todo mundo! Devia ter te abortado!” (Cap. 6, p. 4). Sua infância ainda é povoada de outros traumas, sendo um deles o fato dele ter atacado uma dupla de meninos que faziam piadas com conotação sexual sobre sua mãe ser prostituta (colocando um cigarro no olho de um garoto e mordendo o outro). Depois disso, o pequeno Walter é posto num internato; o menino cresce bem, com notas altas na escola, destacando-se em literatura e ensino religioso, além de uma “impressionante habilidade no boxe amador” (Cap. 6, material complementar, p. 2). Sobre a morte da mãe, aos dezesseis anos, Kovacs só disse uma palavra: “ótimo”. Rorschach é o único que não aceita a Lei Keene (a que proíbe o vigilantismo) e deixa seu recado para o governo americano, sobre o que acha sobre se aposentar, da seguinte forma: escreve num papel perto do cadáver de um estuprador a palavra “NUNCA”, assinando com seu símbolo. Um homem munido de nada mais que seus punhos e sua ideologia – em seu monólogo chega a se questionar porque se importa tanto com a morte do Comediante; sem pensar muito, esclarece: “Porque existe o bem e existe o mal. O mal deve ser punido. Mesmo no Dia do Juízo Final isso não vai mudar. Mas tem muitos merecendo pagar…e tão pouco tempo” (Cap. 1, p. 24).

Com traumas infantis e doutrina tão influente em suas personagens, podemos encarar Rorschach e seu parceiro Coruja II como uma crítica a Batman. Observa-se, além desses traumas, o fato do Cavaleiro Negro ter sido o primeiro super-herói a de fato matar seus vilões e não mandá-los para a cadeia – essa também é uma das doutrinas que Rorschach acredita. De todos os vigilantes, ele (e o Dr. Manhattan, por outros motivos) são os únicos que matam seus inimigos.

Watchmen (Filme)

O DEBATE

Conforme foi dito ao longo deste texto, Watchmen é uma graphic novel de 1985 que mudou a forma como as Histórias em Quadrinhos eram vistas – mas não para todos. Ainda nos dias de hoje, não é raro ouvir concepções negativas para obras que contam com a dinâmica da arte gráfica e palavras. A desvalorização dos quadrinhos é datada desde seu começo até os dias de hoje; a antiga visão de um material feito para crianças, com arte sofrível e conteúdo raso prevalece atualmente. Uma conceituação específica do que é, de fato, literatura de forma objetiva também se mostra difícil já que, por se tratar de um conjunto de obras de cunho subjetivo – delimitar o que é e não é um material literário cabe muito nas mãos daquele que lê a dita obra. O senso comum (e acadêmico) chega a acreditar que considerar Watchmen como parte deste grupo pode desvalorizar e ampliar demais o universo literário.

Porém, no decorrer da análise, e por observação das histórias em quadrinhos, pode-se deduzir que tratar um romance como literatura não o desvaloriza como um romance; Watchmen pode então ser considerado como literatura, mas não se desconsiderando que é uma história em quadrinhos e que deve ser respeitada por ambos os aspectos. De acordo com a análise acima, diversos conceitos aplicáveis a narrativas literárias são utilizadas com clareza nos quadros de Moore & Gibbons; não se ignora os elementos visuais – afinal, literatura ilustrada ainda é literatura. Todavia, Watchmen não tem uma estrutura clássica de um romance padrão. Num livro “comum”, muda-se sua formatação de uma edição de 300 páginas para uma de 550 e, artisticamente, a obra não sofre. Em Watchmen isso não é possível; uma mudança, ainda que mínima, na sobreposição de seus quadros muda o foco que o autor quer que o leitor tenha. A força de certas revelações não seria tão impactante se não fosse realizada a sua colocação específica. Isso porque se trata de uma obra híbrida – um misto da comunicação verbal e de comunicação não-verbal – tornando-a única em diversos aspectos. Dizer que graphic novels são descendentes da literatura é claro; toma-se como exemplo o quinto volume de Watchmen (como todos eles) com uma citação que alude ao poema de William Blake e que pode também aludir a um livro sobre Blake do famoso crítico literário Northrop Frye (Fearful Symmetry). Ao longo da obra, outras referências são dadas a clássicos literários, como o nome de Ozymandias ser inspirado no titulo de um poema de Percy Bysshe Shelley; a frase exemplar pichada nos muros, “Quem vigia os vigilantes?” – como dito no início -, do filósofo Juvenal; o capítulo oito encerrando-se com uma citação da escritora Eleanor Farjeon, entre outras alusões, em que Watchmen sugere que a obra se conecte de alguma maneira significativa e importante com a literatura. Devem ser lembradas, ademais, obras que vão no mesmo sentido e dilema do ser ou não literatura, como Orquídea Negra, de Neil Gaiman e Dave McKean, Violent Cases, também de Gaiman e McKean, Sandman, clássico de Gaiman, V de Vingança, também de Alan Moore, com desenhos de David Lloyd, Sin City, de Frank Miller, Maus, de Art Spiegelman, Habibi, de Craig Thompson, Notas sobre Gazza,de Joe Sacco, e, dos brasileiros, Daytripper, de Fábio Moon e Gabriel Bá e Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho, dentre muitas, por ora não vindo à memória.

Logo, a resposta correta para “HQ é ou não Literatura?” ou “Pode-se fazer um clássico literário através de quadros de gibi?” é indeterminável até certo ponto. Ou seja, não existe uma resposta certa ou errada; por fazer parte de um grupo tão único de arte, constituindo um hibridismo duplo, é óbvia a sua descendência da literatura – tanto na questão linguística, artística e subjetiva. Ainda assim, só isso não seria determinante para se dizer se faz parte da literatura ou não. A questão posta é: há respeito e apreciação necessários para tal obra? Watchmen (e tantos outros trabalhos colocados no mesmo patamar) é (são), mesmo não sendo considerado literatura, respeitado(s) tal como clássico(s) literário(s), já que tem (têm) todas as qualidades de um? A verdade é que, enquanto estas perguntas não obtiverem uma resposta positiva definitiva, ainda haverá uma luta para que a obra gráfica seja considerada parte do patrimônio literário – porque quando se pede para que seja considerada como tal, é para que seja respeitada como uma, mesmo que não haja uma nomenclatura especifica. Por fim, cabe ao leitor que determine o que acredita ser literatura ou não; este artigo tentou, por meio de uma série de elementos, levar a reflexão de que o que se considera como material literário pode ser ampliado a novos horizontes sem se distanciar tanto quanto se imagina. É uma questão, repete-se, de analisar não o mensageiro (História em Quadrinhos), mas o material específico que ele manda, sua mensagem, e não enquadrá-la em divisórias como “Literatura” ou “Não-Literatura”. Portanto, encarar cada trabalho como uma única obra de arte e, a partir dela, analisar se pode ser vista, ou não, como um clássico literário.

 

Referência:

MOORE, Alan, GIBBONS, Dave. Watchmen. Trad. Jotapê Martins, Helcio de Carvalho. Barueri: Panini Books, 2009.

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