Roda viva: a primeira peça de Chico Buarque

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Considerações sobre a peça Roda viva, a qual marca a estreia de Chico Buarque, grande nome da MPB, como dramaturgo brasileiro
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Entre 1964 e 1985, o Brasil vivenciou a Ditadura Militar, repleto de perseguições, torturas, sequestros, assassinatos, exílios, censura à imprensa, à produção intelectual e artística, eliminação do direito de processo eleitoral. As produções artísticas desse período, como era de se esperar, ficou marcada pelo contexto ditatorial brasileiro.
No decorrer dos anos 60, muitos artistas, especialmente jovens talentos, produziram uma arte preocupada com a situação política e social do país, tratava-se de uma arte que se colocava contra o regime autoritário e opressor, havia profundo posicionamento crítico.
Bastante próximo desse grupo de “frente de oposição” estava Chico Buarque de Hollanda, dono de uma produção artística vasta e de repercussão. Sua carreira nas artes começou no ano do último golpe militar, 1964. Suas obras produzidas durante o regime militar, sobretudo o teatro, dialogaram com o contexto histórico de seu tempo, fazendo com elas tenham um caráter de biografia de uma geração. Sua trajetória como dramaturgo iniciou em 1967 com a escrita de Roda viva, que foi montada no ano seguinte, 1968, sob a direção de José Celso Martinez Correa, mais conhecido como “Zé Celso”.
A peça, que possui dois atos, denuncia os bastidores do show business, o que causou enorme escândalo devido à encenação. Nela, temos Benedito da Silva, um cantor sem nenhum talento, mas que é tragado pela indústria do entretenimento. Graças ao Anjo, que é uma espécie de empresário abusivo e de mau caráter, Benedito torna-se um cantor famoso, um ídolo cultuado por inúmeros fãs. Acaba mudando de nome duas vezes, para o “bem” de sua imagem e propaganda, e é levado a cometer suicídio. Tendo isto acontecido, sua esposa, Juliana, que no início não gostava da ideia de seu marido como estrela e nem gostava de seu Anjo, substitui-o na condição de estrela moldada e fabricada, mantendo assim o jogo de interesses financeiros e mercadológicos de empresários do show business.
Os personagens da peça são: Benedito da Silva, um artista absoluto, cantor magnífico e ator principal. Bem Silver, pseudônimo de Benedito, é um nome de propaganda, um nome americanizado (porque isso faz sucesso). Benedito Lampião, por sua vez, nasce com a morte de Benedito da Silva e Ben Silver, é músico brasileiro, ídolo nacional, reacionário e alienado, revisionista e passivo, um homem do povo que vai cantar nos Estados Unidos. Anjo: responsável por fazer de Benedito um homem famoso, estiloso, de boa aparência e um ídolo, sobretudo para as mulheres; ele cobra por este “serviço”: 20% de tudo e é o “velho amigo” do Capeta, vive dando dinheiro a ele para que ele não suje a imagem de Benedito. Juliana é a mulher de Benedito, ela julga o Anjo indecente e aproveitador, acha que a mudança de Benedito fez com que ele virasse uma cintilante “bicha louca”. Capeta, “velho amigo” do Anjo, passa o tempo todo tentando estragar a imagem de Benedito e, para que isso não aconteça, vive “ganhando” dinheiro do Anjo para ficar quieto.  Mané é amigo de Benedito de longa data e vive bebendo em bares. Coro, Vozes Femininas, Voz, Músicos e Povo, embora pareçam ser meros figurantes, atores, pessoas que cantam “Roda Viva” e pessoas que integram a procissão, são os responsáveis, dentro da peça, por exercer comentários, crítica e até julgamentos, ou seja, dão à peça um viés crítico, mas não de modo explícito.
O nome da peça, partindo do sentido do texto, remete a um fatalismo dos dias, devido ao fato de que o sistema capitalista tudo devora, e sempre em proporções gigantescas, sobretudo os sonhos, as ideias e modos de pensar das pessoas. Essa “Roda viva” também remete à ditadura militar e toda a sua opressão.

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Chico Buarque no ensaio de Roda Viva (1968). Fonte: Blog do Zé Celso.

É chamada de comédia musical. Comédia por trazer alegorias, o Anjo na condição de empresário sacana e o Capeta na condição da mídia que critica e expõe a vida do outro, e pela questão do anti-herói, Benedito. E musical por apresentar músicas ao fundo, graças a personagens como os músicos e o coro (uma das músicas apresentadas é a própria Roda viva, de Chico Buarque).
A ação da peça se passa, inicialmente, em um espaço que, de certo modo, é direcionado  ao público: trata-se de um estúdio de televisão. As câmeras existentes ali são as responsáveis por levar as imagens a espaços privados, os lares dos telespectadores.
As falas dos personagens ao longo da peça, embora contenham características de conversa corriqueira e prosaica, são formuladas por meio de uma linguagem que contém rimas, portanto, não é cotidiana. Ex: “Mas que intimidade é essa / Se nem sequer o conheço / Benedito, vem depressa / Vira esse homem pelo avesso!”, Juliana em diálogo com o Anjo.
A peça não foi escrita com padrões realistas, o que é evidente pelos personagens Anjo e Diabo, uma hora apresentados como velhos amigos (ironicamente) e em outra como rivais que se acertam por meio de extorsão de dinheiro, e também pela sucessão de cenas curtas, que nem de perto assemelha-se ao tempo de duração real dos acontecimentos, saltando de um local para outro em questão de linhas. Talvez isso se dê justamente porque o autor não quer expor uma realidade, mas, sim, criticar a realidade vigente.
Todos os personagens e seus conflitos são apresentados de forma distanciada, nada sobre eles é posto de forma detalhada e profunda. Desse modo, leitor ou espectador não conseguem se identificar com eles, mas conseguem refletir sobre o que é colocado como fato.
Roda viva, como já mencionado, é uma peça que apresenta a ascensão de um jovem sem nenhum talento à condição de ídolo popular, belo e famoso. Sua inserção no mundo do show business se dá por uma imagem construída e pré-determinada, que evidentemente é falsa.
O primeiro ato da peça gira em torno de como e por quais meios um ídolo é produzido pela televisão (isto não é posto como uma receita pronta, algo didático, por meio dos acontecimentos e diálogos apresentados é que temos a noção de como isso se dá).
No universo televisivo, a produção de um ídolo se dá de modo ritualístico, pois uma série de imagens acerca de um sujeito são criadas, para que haja aceitação do público. Investe-se nas roupas, na aparência de modo geral, no modo de falar e portar, inventa-se um estado civil e, desse modo, toda uma história de vida é inventada de modo que cative a todos.
Essa manipulação pela imagem é impulsionada pelo Anjo e o Diabo, enquanto um monta uma boa imagem, o outro tenta desfazê-la. Ambos são molas propulsoras da imagem de Benedito da Silva, que passa a Bem Silver e Benedito Lampião, até que chegue a “hora” de sua morte.
Ao contrário do que o nome remete, o Anjo não é, nesse caso, a representação da pureza, inocência e bondade. Ele é uma espécie de empresário, que leva 20% dos lucros de Benedito. Trata Benedito não como alguém que necessita de sua proteção mas, sim, como mera mercadoria, um artigo – e não faz questão de esconder isso.
O segundo ato  apresenta como o personagem principal/ídolo popular passa por um percurso de ascensão e queda. Por meio dos jogos de interesses, dos jogos de relações comerciais da indústria cultural das massas, é mostrado como o ídolo popular é descartado. Essa indústria é apresentada como dona de uma estrutura que se mantém nova e constante devido à circulação constante de “homens de sucesso”. Benedito, portanto, é só mais um, que é interessante até que gere lucros.
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Cena do espetáculo Roda Viva, dirigido por Zé Celso Martinez Corrêa. Fonte: Saraiva Conteúdo

A canção “Roda-viva” se faz presente neste ato. Ela reforça o fato de que vivemos em um redemoinho consumidor e tirano, o qual massifica o ser humano e sua individualidade. A canção apresenta um sujeito que abriu mão de seus projetos de vida, o que faz com que ele se sinta aniquilado e estagnado por causa de um sistema massificador e por causa de um crescimento avassalador do mundo. O tempo, na canção, é apresentado como um agente que provoca a decadência de vida. A tal “Roda-viva” é, também, uma referência à força do regime ditatorial que destruía o desejo do povo de ter voz ativa, posicionar-se, criticar e exigir um país melhor, pois qualquer tomada de posição contrária às normas da época teria graves consequências.
A peça sofreu censura porque era, segundo os censores do período ditatorial, imoral: através de um excesso de palavrões, termos descabidos e gestos obscenos, ofendia o sentimento do pudor médio da coletividade brasileira da época (isto em relação à sua primeira encenação); subversiva: pelo incitamento da plateia a uma tomada de posição contra o regime; fazia irreverência e deboche: faltava com respeito em relação aos militares, autoridades, sacerdotes e plateia, além de ferir normas e preceitos dignos de tradições morais, sociais, religiosas e culturais; sensacionalista: desacatava as autoridades, numa tentativa de desmoralização da Censura; feita na base da improvisação: alterações constantemente eram efetuadas na peça, e estas eram taxativamente proibidas.
Evidentemente, a peça foi censurada porque denunciava a mídia televisiva da época e seus meios de construir ídolos que iriam entreter o povo brasileiro. A mídia da época, de modo geral, era controlada pelo regime ditatorial. Criticar a mídia e seus jogos de interesses era, consequentemente, criticar a ditadura. Isso poderia despertar, tanto nos leitores na peça quanto nos espectadores que assistiam a sua encenação, uma reflexão acerca de tudo que vinha acontecendo e uma tomada de posição contrária aos mandos e desmandos dos que tinham o poder na época. A canção também faz uma referência, como já mencionado, à força do regime militar, que acabava com qualquer chance de um sujeito ser crítico, posicionar-se socialmente, ter sonhos e crescer.
 
Referências consultadas:
ALENCAR, Sandra Siebra. A Censura versus o Teatro de Chico Buarque de Hollanda, 1968-1978. Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 2, p. 101-114, jul/dez 2002, p. 101-113.
BUARQUE, Chico. Roda viva. (Edição em arquivo word, sem detalhes catalográficos).
FRAGA, Maria Elisa Dias. O teatro de Chico Buarque em três tempos: Roda viva, Gota D’água e Ópera do Malandro. Maringá: Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá (Dissertação de Mestrado), 2014.
RABELO, Adriano de Paula. O teatro de Chico Buarque. São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Estadual de São Paulo (Dissertação de Mestrado), 1998.

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