Açúcar amargo, de Luiz Puntel, é um bom exemplo de que a Coleção Vagalume era muito mais do que livros infantis
Dizem que boa literatura é aquela que tira o leitor de sua zona de conforto, que o faz pensar e refletir sobre o que está lendo. Aproxima a ficção da realidade. É assim que se constroem valores, que se edificam e educam seres humanos, talvez diria Antonio Candido em sua “Educação pela noite”.
A escritora gaúcha Carol Bensimon, em recente texto publicado no blog da Companhia das Letras, explica que a primeira vez em que a literatura de fato a “incomodou” foi quando leu Lolita, clássico lembrado tanto pelo texto original de Nabokov quanto pelo filme de Stanley Kubrick. Afinal, um homem “bem sucedido” perder a cabeça por causa duma menina de doze anos não é coisa das mais confortáveis numa sociedade de costumes tão rígidos.
Vasculhei os cantos da minha memória à procura daquele que teria sido meu primeiro incômodo literário. Eu me lembrava de qual havia sido minha estreia como leitor de literatura: O escaravelho do diabo, de Lúcia Machado de Almeida, foi uma grande e viciante experiência, meu primeiro romance policial. Mas eu ainda era um leitor que buscava apenas entretenimento ágil, na pegada das histórias em quadrinhos e filmes de ação. Procurei mais um pouco, abrindo caixas e baús empoeirados e encontrei Açúcar amargo, de Luiz Puntel, da mesma Coleção Vaga-Lume à qual pertencia O escaravelho.
Mineiro de Guaxupé residente em Ribeirão Preto (onde toca uma oficina literária com seu nome), Puntel escreveu outros quatro títulos para a famosa coleção oitentista: Meninos sem pátria, Missão no oriente, Tráfico de anjos e O grito do hip hop (este em parceria com Fátima Chaguri). De acordo com a breve bio presente no site da Editora Ática, para o autor, “escrever é conscientizar”. Açúcar amargo não deixa dúvidas de que ele realmente pensa dessa maneira.
O primeiro e óbvio estranhamento vem com a inversão de valores proposta pelo título: “amargo” não costuma ser o adjetivo que define a essência do açúcar. O que transformaria algo conhecido pela doçura no seu contrário?
A história relata as dificuldades sofridas pelos cortadores de cana no interior de São Paulo, sobreviventes a um regime trabalhista insalubre, num ambiente de desmandos, preconceitos e abusos. Esse resumo já serviria para explicar o amargor que compõe o título.
Uma guerra civil é instaurada quando os trabalhadores resolvem resistir à tirania de seus patrões. Para concretizar o cenário, uma imagem real: a foto que deu a Osmar Cardes o prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos no ano de 1984.
Fui criado num bairro periférico da cidade de Matão, interior de São Paulo. Grande parte dos meus vizinhos era formada por pessoas que vieram de longe, quase sempre do Nordeste, para trabalhar nas safras de corte de cana. O livro ajudou aquele garoto magricela a enxergar uma realidade difícil, de mãos calejadas e muito suor, que estava ali, a poucos metros de distância da sua. Ele passou a entender os motivos que levavam (e ainda levam) aquela gente a dividir cômodos minúsculos com um grande número de indivíduos, compartilhando cheiros, colchões, comida, saudades e sofrimentos. Grau zero de privacidade. Compreendeu a razão que os forçava a vir de tão longe para viver numa realidade tão ruim: a situação de lá era ainda mais desesperadora. É por isso que o homem de hoje simplesmente não acredita quando vê algumas (muitas) pessoas condenarem aqueles que elegeram a atual presidenta do país, sabendo que este foi o primeiro plano de governo (sim, com seus mais do que evidentes erros) que se voltou para quem nunca foi lembrado. Os que vão até sua terra natal visitar os parentes distantes há mais quinze anos dizem que agora há comida, emprego, ruas asfaltadas, casas cimentadas, crianças na escola, coisas antes inimagináveis. Ninguém mais precisa atravessar o país para juntar feixes de cana.
Açúcar amargo talvez tenha me ajudado a optar pela visão de mundo e valores que possuo hoje. Mas ainda há a possibilidade de tudo isso ser uma grande bobagem e eu estar falando besteira. Ainda assim, pegando gancho na ideia de João Cabral de Melo Neto, acho que lê-lo foi um tipo de “educação pelo corte de facão”.