Alabardas, Alabardas – sobre a obra inacabada de José Saramago

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Análise crítica do romance Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, obra inacabada de José Saramago, através dos comentários dos especialistas Fernando Gómez Aguilera, Luiz Eduardo Soares e Roberto Saviano.

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Ao falecer em 2010, José Saramago deixou uma obra inacabada: Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas; e sobre ela três autores escreveram ótimos ensaios reunidos em um livro com o mesmo título: Fernando Gómez Aguilera, escritor e ensaísta que em 2007 publicou em Portugal a biografia José Saramago: a consciência dos sonhos, Luiz Eduardo Soares, Antropólogo e cientista político e Roberto Saviano, jornalista autor de Gomorra obra que expôs ao mundo o modo de agir da Camorra, grupo mafioso de Nápoles na Itália.

Em mais uma obra da genialidade narrativa de Saramago, ele nos sacode da inércia, do embotamento das ideias, e nos faz pensar. E como é bom e necessário tomarmos às vezes essa “sacudidela”. O livro conta a história de Artur Paz Semedo, um funcionário burocrata de uma empresa fabricante de armas, que trabalha há quase vinte anos no setor de faturação de armamento ligeiro e munições de uma antiga e histórica fábrica de armamentos que tem o sugestivo nome de Produções Belona S.A.,uma referência à deusa da guerra. A narrativa gira em torno de Artur Paz Semedo para nos levar a refletir sobre a produção e uso das armas, bem como seus desdobramentos para a humanidade. Artur Semedo nunca pegou em uma arma, é um sujeito tranquilo, bom cidadão, cumpridor dos seus deveres, tem orgulho de trabalhar para aquela empresa e é um apaixonado por armas, chega a se emocionar por ocasião do lançamento de um novo armamento, acha natural que se produzam armas, afinal elas são necessárias e guerras sempre existirão. Sua maior aspiração é ser promovido para o setor de faturação de armas pesadas. A única coisa que o tira um pouco do eixo é sua ex-mulher Felícia, uma pacifista convicta e antagonista de Artur Semedo, que o deixou por não aguentar a dedicação cega do marido ao trabalho. Aqui Saramago se detém na questão do homem comum, respeitável, eficiente, serviçal, obediente e omisso. Hannah Arendt já discorreu sobre essa condição quando entrevistou um membro do Partido Nazista em Nuremberg que achava injusta sua condenação, sendo ele apenas um funcionário burocrata que cuidava à distância da logística do encaminhamento dos que iriam para as câmaras de gás e os campos de concentração. Arendt dizia que se você olhasse para ele, de fato não acreditaria que representasse qualquer perigo para a humanidade, e é para este ponto que Saramago quer chamar nossa atenção: sobre a responsabilidade ética do sujeito para consigo e para com a sociedade como resultado de sua atuação.

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Companhia das Letras, 2014

A ideia que serviu de “gancho” para o livro foi uma antiga pergunta que inquietava Saramago: o motivo pelo qual não se sabe de greves na indústria armamentista, e que depois associou a um acontecimento de que teve notícia e lhe causou forte impressão: durante a Guerra Civil Espanhola, uma bomba lançada contra as tropas da Frente Popular na Extremadura não havia explodido por causa de um ato de sabotagem, e dentro dela acharam alojado um papel com uma breve mensagem que dizia: “esta bomba não explodirá”. Mais tarde ele descobre na obra de André Malraux, L’Espoir, uma breve referência a operários de Milão fuzilados por terem sabotado obuses. Segundo Fernando Gómez Aguilera, “episódios de sabotagens de armamento vinculados a mensagens de ânimo às forças republicanas não são desconhecidos nas páginas da literatura, nem em jornais da época. O testemunho literário mais mencionado é dado por Arturo Barea em La llama, terceiro volume da trilogia La forja de um rebelde”.

Artur Semedo era um apreciador de filmes sobre guerras e certo dia descobre que na cinemateca da cidade estava passando L’Espoir, de André Malraux, uma obra sobre a Guerra Civil Espanhola rodada em 1939. Ao tomar conhecimento que o filme fora baseado no livro de mesmo nome, Semedo que não era muito dado a leituras, resolve que irá ler esta obra. Tudo ía bem com sua leitura quando já no desenrolar da história, viu a seguinte passagem que o deixou abalado: “O comissário da nova companhia pôs-se de pé: ‘Aos operários fuzilados em Milão por terem sabotado obuses, hurra’”. Ele nunca ouvira falar em tal absurdo, que alguém tivesse se atrevido a sabotar instrumentos bélicos pelos quais era tão afeiçoado. Ele até sentira uma certa piedade do destino deles, mas logo depois achou que tiveram o que mereciam. Resolve então contar sobre o acontecido para sua ex-mulher, e em meio a uma discussão entre os dois, ela sugere que ele vasculhe os arquivos da fábrica para saber como a empresa esteve envolvida com os conflitos. Depois de inventar um motivo e de certa resistência por parte do diretor, ele finalmente é autorizado a verificar os arquivos. Nessa altura do romance o narrador antecipa o que já podemos imaginar: que tudo leva a crer que a indústria armamentista está de fato envolvida até o pescoço com os conflitos daquele período e de todos os demais.

Para a indústria de armas, quanto mais o mundo for belicista e violento, melhor. Tudo que puder alavancar vendas futuras é bem vindo, afinal o gosto pela luta armada já nasceria com o homem, a ganância, as disputas por poder e pela sua manutenção já fazem parte da natureza humana, a indústria apenas fornece os meios para tal, meios estes que cada vez mais se aprimoram. Hoje em dia com instrumentos bélicos mais eficazes as guerras são mais rápidas, mais limpas, além de economizar a vida de soldados, estes muitas vezes nem precisam ver de perto o resultado da artilharia. Seja bem vindo então todo fanatismo religioso, todo ufanismo patriótico, todos os regimes de governo tirânicos, todo crime organizado, e o sentimento de medo em geral. Em uma passagem do romance ao fazer recomendações para Artur Semedo sobre a busca nos arquivos da Belona S.A. Felícia diz: “Não procures encomendas assinadas pelo general Franco, não as encontrarias, os ditadores só usam a caneta para assinar condenações à morte”.

Saramago deixou sua obra inconclusa, não se sabe qual destino ele teria dado à Artur Paz Semedo. Se depois de descobrir o que de verdade se passava na história da empresa ele cairia em si sobre sua participação, mesmo que indireta, ou se continuaria cumprindo sua rotina de burocrata obediente. A omissão pressupõe que mesmo ao saber ou desconfiar que algo não vai bem, que aquilo que nos passam como normal não o é, continuamos agindo da mesma forma. Mas agir da mesma forma pode ter lá suas justificativas, já continuar sendo a mesma pessoa não. Como Luiz Eduardo Soares conclui em seu ensaio, sobre a peculiaridade da violência para Saramago, “Antes do assassinato em massa, há o desamor e suas variações. Antes do apetite voraz do capital, tipos prosaicos almoçam e jantam”. Há que ter dentro de si pelo menos uma centelha de dúvida. Segundo Roberto Saviano, dentro de Artur Paz Semedo há o núcleo de ouro já anunciado no Ensaio sobre a cegueira: “Sempre chega um momento em que não há nada mais a fazer senão arriscar”.

Fernando Gómez Aguilera citando os Cadernos de Lanzarote, onde Saramago sintetiza que“se a ética não governar a razão, a razão desprezará a ética”, ou em outras palavras, não há necessidade de seres extraordinariamente perversos para que o mal triunfe. Einstein teria proposto que existe também outro direito humano que poucas vezes se menciona, embora esteja destinado a ser importantíssimo: o direito, ou o dever, que tem o cidadão de não cooperar para atividades que considere errôneas ou daninhas.

Há aqueles que movidos por um espírito inquieto, por algum tipo de desassossego com os rumos do seu destino, ao invés de levarem uma vida tranquila, optam por vasculhar as sombras, lutar por causas ditas “perdidas” muitas vezes quase sozinhos, com as “armas” que tem à mão e não raro ficam em desvantagem. Claro que são em número bem reduzido. São os que não se importam em subir a montanha carregando a pedra de Sísifo mesmo sabendo que ao chegar lá em cima, senão ficarem pelo meio do caminho, a pedra rolará novamente montanha abaixo e ele ou outro terão que começar tudo de novo. São os antagonistas de Artur Paz Semedo ou quem sabe o próprio. José Saramago era um desses espíritos inquietos que mesmo ao chegar ao final de sua jornada, ainda tinha algo a dizer.

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