Poucos conhecem a última obra publicada em vida pelo escritor de Alice no País das Maravilhas, mas Sylvie and Bruno talvez seja a obra-prima de Lewis Carroll.
“’ Mas oh, Sylvie, o que faz do céu um azul tão terno?’
Os doces lábios de Sylvie moldaram-se para responder, mas sua voz soava fraca e distante. A visão estava rapidamente escapando da minha ávida vista: mas me parecia, naquele último momento perplexo, que não era Sylvie, mas um anjo olhando através daqueles fiáveis olhos castanhos, e que não a voz de Sylvie, mas a de um anjo sussurrava
‘O amor’”
Sylvie and Bruno e Sylvie and Bruno Concluded, publicados nos últimos anos da vida de Lewis Carroll, seriam o seu maior fracasso comercial. Estranho dizer, por outro lado, que foram, também, sua obra mais nobre — possivelmente as palavras mais puras a respeito da verdadeira essência do misterioso Charles Dodgson, o nome real do autor de Alice no País das Maravilhas. Mas é impossível negar que as intenções de Carroll, no último livro que escreveria, fossem as melhores. Entre reflexões filosóficas sobre temas como culpa, pecado, altruísmo e até respeito para com os animais, as pequenas fadas Sylvie e o irmão Bruno vêm para resgatar aquilo que começava a minar nas últimas décadas do século XIX: a fé e a inocência, a esperança acima da frieza da ciência, a pureza infantil perseverando acima da incredulidade adulta, e salvando-a com sua magia do amor. Lewis, por si mesmo, era um infeliz professor de matemática em Oxford, habituado a cálculos e fórmulas, socialmente retraído, com uma tendência à organização acentuada, e fisicamente debilitado por uma série de problemas. Especula-se que tinha epilepsia, além de sofrer de enxaquecas constantes e ser surdo de um ouvido. Era gago, mas há quem afirme que tal condição desaparecia quando estava junto de uma criança — e não é de se estranhar que o desgostoso Carroll, quando diante daquilo que lhe representava o antídoto de toda a infelicidade adulta, se entregasse a um relaxamento contente. Apesar das inúmeras especulações acerca de suas intenções nesses casos, é mais provável que Charles Dodgson não tivesse interesse sexual nas meninas a que se afeiçoava. Em Sylvie and Bruno, fica claro que a infância é, para ele, a maior representação da beleza no universo. Através dos acontecimentos malucos na aventura das duas fadas, o autor busca avidamente pela inocência perdida, a inocência que deve ser recuperada e mantida na construção de um caráter melhor, na evolução espiritual para a qual serve a experiência terrena. No prefácio que antecede a primeira edição, ele discorre sobre o assunto:
“Mas, uma vez que percebamos qual é o verdadeiro objetivo na vida—que não é prazer, nem conhecimento, nem sequer a fama(…)—mas que é o desenvolvimento do caráter, a subida a um mais elevado, mais nobre, mais puro estandarte, a construção do homem perfeito—e então, ao longo que sentirmos que isso continua, e vai (confiamos) para sempre continuar, a morte não tem para nós nenhum terror; não é uma sombra, mas uma luz; não é um fim, mas um começo!”
No mesmo prefácio, Carroll demonstra grande interesse em desenvolver obras religiosas, que inspirem nos pequeninos os “mais sérios pensamentos da vida humana”, e admite que Sylvie and Bruno fora moldado nessa direção. Mas deixa claro que, na infância, a religião deve ser tratada como uma revelação do amor. Desse modo, é mais do que natural que a grande heroína de Carroll seja então Sylvie, ao invés de Alice.
A história de Sylvie and Bruno se divide em dois universos diferentes: o narrador, um homem doente cuja enfermidade jamais é explicada, e o nome jamais revelado, transita entre o mundo real, onde vai ao encontro de um amigo médico na pequena cidade inglesa de Elveston, e Fairyland, o mundo das fadas que lhe surge em sonhos e depois passa a se misturar com a vida cotidiana. Ele conhece Sylvie, a graciosa fada que tem de escolher entre amar todos e por todos ser amada (e, num heroísmo natural, escolhe “amar todos”) e Bruno, seu irmão mais novo que detesta estudar as lições e tem um jeito de falar errado bastante peculiar. O pai dos dois protagonistas é o prefeito de Outland, província do mundo de Fairyland, mas ocorre uma conspiração para roubar-lhe o posto; e, no meio de toda a confusão, a madura Sylvie e o pequeno Bruno se perdem entre as florestas da Inglaterra e as províncias mais malucas de Fairyland, enquanto emprestam magia aos acontecimentos triviais da vida do narrador. Arthur, o médico e amigo do protagonista, está apaixonado pela encantadora Lady Muriel, que mais parece uma versão crescida e palpável de Sylvie. Mas há outro pretendente em vista para Lady Muriel, e uma epidemia de febre ameaça a vila próxima de pescadores, pondo em risco a vida de Arthur, que vai à assistência dos doentes. O desfecho, no entanto, é feliz; e, mesmo sendo extremamente pesado em relação à afável Alice, ainda há a aura encantadora e nonsense que caracterizam Carroll. Ele mesmo, aliás, parece surgir na pele de “Mister Sir”, como é evocado pelo hilário Bruno. É fácil encontrar sentidos ocultos em tal semelhança: Carroll, também eternamente debilitado por tantas doenças, deparava-se com a chegada do fim quando escreveu Sylvie and Bruno; e, de acordo com a própria convicção espiritual, era-lhe importante encontrar na vida um sentido que ultrapassasse a atmosfera cinzenta do cientificismo da época. Aqui o livro triunfa, arrancando suspiros dos leitores mais sensíveis. Para os padrões atuais, no entanto, Sylvie and Bruno é considerado excessivamente sentimentalista, quase piegas—interpretações por demais contemporâneas.
O público que consumira Alice tão avidamente na época, também, frustrou-se pela extrema diferença entre as duas obras; e, muito possivelmente, Carroll não conseguiu direcionar-se ao público que desejava, declaradamente infantil. É fato que o imaginário das crianças da época, suas noções e ideias, eram bastante distintas do que consideramos, hoje em dia, natural. Mas é difícil imaginar que mesmo as letradas crianças vitorianas encontrassem diversão nos discursos de Arthur sobre pecado, classes sociais e ciências.
Assim como Alice, Sylvie and Bruno foi belamente ilustrado. Harry Furniss, respeitado ilustrador que assinava algumas revistas da época, passou por tumultuadas discussões com Carroll antes de entregar-lhe o trabalho desejado. Ao admirar as peças hoje, no entanto, é óbvio que a exigência do autor valeu a pena:
Para quem quiser conhecer o que Carroll considerava como sua obra-prima, o livro pode ser baixado de graça pela loja da Amazon. Foi traduzido e publicado no Brasil em edição da Iluminuras, em 1997, mas não houve edição posterior. Também está disponível em inglês na internet. Você pode ler por aqui.