A Teoria dos Gêneros de Aristóteles, Boileau e Victor Hugo

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A Teoria dos Gêneros de Aristóteles, Boileau e Victor Hugo

Enquanto Aristóteles, em sua Poética, assume um tom expositivo para estabelecer os parâmetros de classificação dos gêneros, Boileau adota um estilo impositivo em A Arte Poética, definindo as regras para uma boa escrita, ainda que inclua certo lirismo em seu texto, e Victor Hugo faz uma análise intelectual e sentimental da história dos gêneros no Prefácio ao Cromwell

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Introdução

Este ensaio tem por objetivo analisar comparativamente os textos Poética, de Aristóteles, A Arte Poética, de Boileau e Prefácio ao Cromwell, de Victor Hugo. Pretende-se expor as principais características de cada texto no que se refere ao estilo e ao conteúdo, assim como as semelhanças e diferenças que possuem entre si. Assim, será possível perceber como a definição e classificação dos gêneros foi se modificando ao longo do tempo, sendo os autores escolhidos representantes, respectivamente, da Antiguidade, do Classicismo e do Romantismo.

Poética como cânone

A obra Poética, de Aristóteles, é pioneira em esquematizar os gêneros literários, servindo, portanto, como referência para todas as classificações posteriores. O filósofo grego preocupa-se em expor as características dos três gêneros principais: épico, lírico e dramático. Como a parte relativa à lírica foi perdida ou ignorada, as informações restantes referem-se exclusivamente à épica e ao drama.

Considerando que todas as manifestações de poesia (que pode ser compreendida hoje, em sentido amplo, como literatura) partem da imitação, o que as diferencia entre si são os meios, os objetos e os modos. O meio corresponde ao ritmo, à harmonia e a elocução (metro). O objeto designa a fonte de imitação, normalmente homens de caráter superior, no caso da epopeia e da tragédia, ou inferior, no caso da comédia. O modo abarca a narração e as personagens.

A comédia, variação do gênero dramático, possui como objeto de imitação homens medíocres, com algum tipo de vício que os torna ridículos. A epopeia e a tragédia se ocupam igualmente de homens virtuosos, porém se distinguem por outros aspectos. A tragédia impõe um limite temporal e espacial, prendendo-se normalmente a ação a um único cenário e a um único dia; já a epopeia costuma empregar uma extensão temporal muito mais ampla e variar as locações. Enquanto a epopeia tem estrutura narrativa, a tragédia tem representação por atores.

Outra especificidade da tragédia é a capacidade de suscitar o terror e a piedade, que geram a catarse, isto é, “a purificação dessas emoções” (ARISTÓTELES, 1993, p. 37). Os meios para se atingir esse efeito, na tragédia, são a peripécia e o reconhecimento. A peripécia é o momento em que o destino do herói é revertido, isto é, a felicidade torna-se infelicidade, ou o contrário, sendo mais comum a primeira opção. O reconhecimento ocorre quando o herói toma conhecimento de quem é, normalmente reconhecendo sua falha trágica. O ideal é que o reconhecimento e a peripécia aconteçam ao mesmo tempo, o que corresponderia a uma ação complexa; esse é o caso de Édipo Rei. Por fim, a catástrofe final encerra a tragédia, podendo ser a morte ou o sofrimento do herói.

Aristoteles

O elemento essencial da tragédia é a ação, já que é através dela que as personagens demonstram seu caráter e o enredo se desenvolve: “[…] a Tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade […] ou infelicidade, reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade” (ARISTÓTELES, 1993, p. 41). Aristóteles dá bastante ênfase à tragédia, expondo toda sua estrutura e suas variações, pois a considera como o mais grandioso dos gêneros. A tragédia possui todos os aspectos da epopeia, como o herói virtuoso e a linguagem elevada, e ainda outros que a enriquecem artisticamente, como a representação cênica, o diálogo e o coro. Assim, a epopeia é superior à comédia, por representar caráteres elevados, e a tragédia é superior à epopeia, por possuir maior variação de elementos.

Aristóteles aborda ainda, em sua Poética, as questões da verossimilhança e da necessidade, da unidade da literatura e do que a diferencia da História. Um Mito, ou enredo, é constituído de princípio, meio e fim, formando uma unidade, um todo significativo. Sua extensão deve ser suficiente para que a memória possa retê-la, seguindo um dos princípios da necessidade, que rege as possibilidades de encadeamento das ações. Assim, um enredo é uno e verossímil quando possui coerência interna, estando todas as suas partes devidamente interligadas, com um limite razoável para a compreensão e apreensão. O importante é que a história seja convincente dentro do universo ficcional em que se encontra, mesmo que impossível de ocorrer na realidade: “Com efeito, na poesia é de preferir o impossível que persuade ao possível que não persuade” (ARISTÓTELES, 1993, p. 143).

Desta maneira, a literatura se diferencia da História: ainda que ambas narrem fatos, esta se ocupa do que realmente aconteceu, restringindo-se a um universo mais particular, enquanto aquela cria novos fatos, possibilitando que se explorem emoções e relacionamentos universais. Com isso, é possível verificar como a literatura é caracterizada por sua universalidade e unidade.

Finalmente, em relação à crítica, Aristóteles ressalta dois tipos de erros comuns: os essenciais, intrínsecos à obra, que ocorrem por incapacidade do artista, e os acidentais, quando se referem a algum elemento não tão bem construído, que prejudica o todo, mas não é intrínseco à obra. O filósofo destaca a importância de não se impor à obra os princípios pessoais do crítico, ou seja, ler um texto com ideias pré-concebidas sobre ele e, quando decepcionado em suas suposições, acreditar que o defeito se encontra na obra. E expõe os principais problemas que podem ser encontrados em um enredo: “As críticas resumem-se, pois, a cinco espécies: ou porque [as representações] são impossíveis, ou irracionais, ou imorais, ou contraditórias, ou contrárias às regras da arte” (ARISTÓTELES, 1993, p. 143).

A importância da Poética consiste, então, na universalidade de seus princípios em relação à arte literária e à questão dos gêneros. Esses princípios podem ser analisados, adaptados e reelaborados de acordo com a época e os gêneros escolhidos.

A Arte Poética como receituário

Nicolas Boileau-Despréaux, teórico do classicismo francês, baseou-se em referências anteriores para construir sua obra A Arte Poética, uma coletânea de regras e conselhos para a boa composição artística, de acordo com o gênero a que pertence. Ele compõe seu texto em versos, utilizando-se de metáforas e outras figuras de linguagem, e assim diferenciando seu estilo do pragmatismo de Aristóteles. Também aborda com mais detalhes os elementos da lírica e da comédia, negligenciados pelo filósofo grego.

No Canto I, o autor expõe alguns conselhos gerais para um bom poeta: valorizar a razão acima de tudo, cultivar o bom senso, ser moderado e evitar a baixeza, variar o estilo, prestar atenção às imposições formais do gênero. “Seja simples com arte, sublime sem orgulho, agradável sem artifício” (BOILEAU, 2012, p. 18). Ele também ressalta a importância de ser crítico de si mesmo e adotar amigos igualmente críticos, não bajuladores. Esses princípios são, em certa medida, semelhantes aos de Aristóteles. É possível, por exemplo, comparar o “bom senso” defendido por Boileau com a “necessidade” definida por Aristóteles: aquilo que seria adequado ao contexto da obra. É coerente que Boileau, pertencente à corrente classicista, adote os valores de harmonia e grandeza da Antiguidade clássica.

No segundo canto, são dispostas as particularidades dos gêneros menores ou secundários, correspondentes à lírica: o idílio, a elegia, a ode, o soneto, o epigrama, o rondó, a balada, o madrigal, a sátira e o vaudeville. O teórico reconhece os subgêneros da lírica como expressão individual, derivadas dos sentimentos do autor, uma ideia que precede a supervalorização romântica da inspiração. Ainda que ele não despreze nenhuma das formas artísticas apresentadas, reconhecendo sua beleza estética, classifica o gênero lírico como pequeno, fato curioso para um autor que também foi poeta e faz poesia em sua própria obra crítica, versificada e cheia de recursos líricos.

O Canto III é dedicado à análise mais apurada dos grandes gêneros: o drama, manifestado pela tragédia e pela comédia, e a epopeia, o que consiste numa divisão bastante aristotélica. Nesse ponto, Boileau reproduz quase que inteiramente os princípios do filósofo grego. O classicista realça a importância de agradar o público com sua arte e de ser verossímil: “Nunca ofereça algo de inacreditável ao espectador: a verdade pode às vezes não ser verossímil” (BOILEAU, 2012, p. 42). Os heróis da tragédia e da comédia devem ser convincentes, virtuosos e louváveis, porém humanos por suas fraquezas, assim como as personagens medíocres da comédia não precisam ser grosseiras, para não ofender o público. Outras convergências com a Poética são a imitação da natureza, o terror e a compaixão despertados pela tragédia, a regra das três unidades dramáticas (um dia, um espaço e uma ação) e a escolha do tom apropriado (elevado para a tragédia e a epopeia).

No último canto, Boileau conclui com mais algumas recomendações de ordem prática: aceitar a própria vocação, seja para a arte ou outro ofício qualquer, acatar as críticas consistentes, saber divertir o público de maneira instrutiva.

 A Arte Poética expõe instruções formais para a composição artística, funcionando como um receituário, sem por isso perder de todo seu valor crítico, pois abarca as características dos principais gêneros literários, de acordo com os ideais do Classicismo. A despeito do rigor formal defendido por Boileau, ele adianta algumas ideias românticas, como a defesa da inspiração, do gênio do artista e da arte empolgada.

Nicolas_Boileau

Prefácio ao Cromwell como libertação

Victor Hugo, no prefácio que escreve à peça Cromwell, introduz os preceitos artísticos românticos, libertando-se das amarras formais, sem deixar de respeitar as peculiaridades de cada gênero literário. Ele analisa a história dos gêneros até chegar à idade moderna e valoriza sentimento e intelectualidade na construção de uma obra.

O autor faz uma divisão da evolução dos gêneros em paralelo à evolução da humanidade, considera a idade primitiva, a antiga e a moderna, às quais corresponderiam, respectivamente, a lírica, a épica e o drama. Os povos primitivos, por sua relação íntima com a natureza, dedicam-se a idealizá-la por meio da ode e das canções líricas. Quando as grandes civilizações se estabelecem, a epopeia é o gênero ideal para narrar a bravura dos povos conquistadores. De maneira semelhante, a tragédia encena feitos heroicos. Até que o cristianismo traz um espírito de melancolia, de meditação, ao mesmo tempo de análise e de curiosidade. As simbologias de Deus e do diabo, do bem e do mal, da luz e da escuridão dão origem a uma convivência gradual do grotesco e do sublime na literatura. A comédia é a forma que consegue unir essa oposição. Nesse ponto consiste a separação da literatura romântica da clássica, segundo Hugo: “[…] é da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão complexo, tão variado em suas formas, tão inesgotável em suas criações, e tão oposto à uniforme simplicidade do gênio antigo […]” (HUGO, 2011, p. 5).

Apesar de exaltar a literatura romântica como representante da modernidade, o escritor não desvaloriza o legado de tudo que foi construído até então, reconhecendo sua importância: “Nada vem sem raiz; a segunda época está sempre em germe na primeira” (HUGO, 2011, p. 5). Ele define como ícones para as três fases literárias a Bíblia, Homero e Shakespeare.

Assim como Aristóteles, Victor Hugo considera o drama como o maior e mais completo dos gêneros. O inovador de sua classificação é misturar a poesia lírica ao drama na época moderna. Esse lirismo moderno se diferencia do antigo porque, mesmo que valorize a natureza, não só a contempla, mas também reflete sobre ela. É assim, então, que se dá a união da intelectualidade e da sensibilidade, do grotesco e do sublime, do lírico e do dramático, sintetizado na comédia.

Hugo contesta a submissão às regras de tempo e espaço no gênero dramático, pois a unidade da ação é a única que de fato importa. Ele julga que existe uma interpretação equivocada do código aristotélico e que segui-lo à risca é extremamente limitador para a arte. Não se pode copiar perpetuamente o modelo dos antigos, como tentaram os clássicos. É preciso que o artista esteja de acordo com sua época, tomando por modelo único a própria natureza: “Não há nem regras nem modelos; ou melhor, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que plainam sobre toda a arte e as leis especiais que, para cada composição, resultam das condições de existência próprias para cada assunto” (HUGO, 2011, p. 10). Assim, o romântico valoriza o gênio criador, dotado de talento e inspiração, capaz de produzir uma obra original. O talento, contudo, deve ser acompanhado de estudo. O verdadeiro gênio sabe reunir, então, técnica e inspiração, na medida certa.

De maneira semelhante a Aristóteles e Boileau, Hugo prega a verossimilhança em lugar da verdade absoluta, já que considera que a verdade da arte não consiste na realidade, e sim na potência criativa. E o drama parece ser a melhor maneira de exprimir as características da natureza humana. Ao contrário do que a crítica moderna defende, Hugo acredita que o verso ainda é a forma mais apropriada a ser empregada no drama, pois está mais próximo ao pensamento. Isso consiste, porém, numa questão de importância secundária: “A categoria de uma obra deve ser fixada não segundo sua forma, mas segundo seu valor intrínseco” (HUGO, 2011, p. 13).

O artista finaliza ressaltando que, conforme os tempos mudam, as línguas e suas respectivas literaturas também se modificam, o que consiste numa evolução natural. Cada época acaba por trazer alguma contribuição às posteriores, e assim sucessivamente.

O texto de Hugo representa uma ruptura dos valores clássicos. É possível, portanto, colocá-lo em oposição em relação ao padrão formal rígido imposto por Boileau em A Arte Poética. Ele faz uma análise da arte e seus gêneros de expressão, mas, diferentemente do autor clássico, não pretende modelar a criação artística. Hugo não é radical em sua quebra de paradigmas, não despreza a produção anterior e até mesmo retoma certos princípios da Poética de Aristóteles.

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Síntese das teorias

Enquanto Aristóteles, em sua Poética, assume um tom expositivo para estabelecer os parâmetros de classificação dos gêneros, Boileau adota um estilo impositivo em A Arte Poética, definindo as regras para uma boa escrita, ainda que inclua certo lirismo em seu texto, e Victor Hugo faz uma análise intelectual e sentimental da história dos gêneros no Prefácio ao Cromwell. Os três autores ressaltam de alguma maneira a importância da verossimilhança da obra e de agradar ao público. Outro ponto em comum é a valorização do drama como o maior dos gêneros. A diferença é que Aristóteles destaca a tragédia e Victor Hugo a comédia.

Conclusão

As três obras em questão possuem sua importância como material crítico, por corresponderem a análises de grandes pensadores de suas épocas. Com enfoques diferentes, Aristóteles, Boileau e Victor Hugo classificam os gêneros literários e discutem certos aspectos da composição artística e da própria crítica. É possível observar certa evolução de ideias, se for considerado que Aristóteles atua como precursor das definições de gênero, estabelecendo que toda criação é uma imitação e diferenciando cada tipo, Boileau introduz os conceitos de inspiração e gênio artístico, mas permanece atrelado ao modelo clássico, e Victor Hugo retoma a valorização da natureza e das características humanas na arte de maneira inovadora, valorizando a originalidade da criação.

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Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1993.

BOILEAU-DESPREAUX, Nicolas. A Arte Poética. São Paulo: Perspectiva, 2012.

HUGO, Victor-Marie. Prefácio ao Cromwell. In: SOUZA, Roberto Acízelo (org.). Uma Ideia Moderna de Literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó: Argos, 2011.

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