Walter Benjamin e a utilitária arte de narrar

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Walter Benjamin e a utilitária arte de narrar

Walter Benjamin a arte de narrar

Em seu famoso ensaio O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Walter Benjamin põe em xeque tanto uma ideia de narrador quanto de experiência. A própria arte de narrar.

Na verdade, Benjamin procura demonstrar de que forma ambos estão imbricados. Parte então de uma constatação baseada na seguinte observação: a cada dia é mais raro pessoas que saibam narrar devidamente.

[O que é bárbaro em Benjamim são essas colocações feitas a marteladas, limpas e secas, mas logo depois desenvolvidas com a fluidez e melindre da água]

A faculdade de intercambiar experiências, algo que parecia seguro e inalienável, de repente, pode ter sido solapada. Essa é a colocação que defenderá durante todo o ensaio, a experiência, dito de outra maneira, a experiência de narrar, já não é mais possível.

Benjamin nota que os combatentes, ao final da guerra, voltavam mudos do campo de batalha. E então se pergunta, como é possível um combatente que sobreviveu à guerra voltar dos campos de batalha sem nada a dizer, quando supomos justamente o oposto, que tenha muita experiência vivida a ser narrada.  O que os livros sobre a guerra têm a dizer não parece ser, para Benjamin, a mesma coisa da narrativa que poderia ter sido feita por tais soldados.

A experiência que recomeça a cada nova ativação da narrativa oral seria o arcabouço a que recorrem os narradores, por isso, sustenta que as melhores narrativas escritas seriam aquelas que menos se distinguem das histórias contadas pelos “inúmeros narradores anônimos”. Não se trata de separar narrativa oral da escrita, afinal, e sim de aproximar ambas numa experiência particularmente prática e engrandecedora. Para ilustrar a grandiosidade da experiência de narrar, Benjamin elabora uma tipologia desses possíveis narradores, quase que arquétipos que são ativados a cada nova narrativa.

Temos o narrador que representa a máxima: “Quem viaja tem muito a contar”. Ao imaginar o narrador como aquele que vem de outra cidade, país, continente, esse narrador representa a maquinação de tudo aquilo que nos falta, que nos é estranho, mas também desejado. É esse narrador responsável por nos demonstrar que, apesar de o tamanho da Terra ser limitado, a experiência de conhecer o mundo é incomensurável.

De outro modo, há também aquele narrador que representa o “homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições”. É o tipo ao qual o turista recorre em suas viagens, pois seu interesse maior, enquanto viajante, é na fixidez daquela experiência de quem conhece como a palma da mão aquilo que ele, o turista, conhece apenas como uma promessa de alteridade.

O primeiro tipo de narrador seria o marinheiro comerciante, e o segundo, o camponês sedentário, diz Benjamin. É na interpenetração do oral e do escrito, de um lado, e do marinheiro comerciante e do camponês sedentário, do outro, que podemos compreender, segundo o ensaio, “a extensão real do reino narrativo”.

[Hemingway, que trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) representa bem o primeiro tipo de narrador; na outra ponta, Ariano Suassuna, com sua obra centrada na exaltação da cultura nordestina, seus mitos e símbolos, nos dá uma boa dimensão desse segundo tipo de narrador.]

Esses dois narradores benjaminianos têm no senso prático a maior das características. A narrativa procura resolver sempre um problema de ordem prática. Essa é sua natureza. Não à toa, a narrativa ressurge a cada vez que uma questão utilitária precisa ser resolvida por aquele que narra.

[Benjamin não usa essa imagem, mas é como se um fio precisasse  ser desenrolado, um nó ser desfeito para que a dimensão utilitária da narrativa possa ser ativada.]

Narrar representa, nas exatas palavras de Riobaldo ao doutô, em Grande Sertão:  Veredas, um “segundo ganho” àquele que narra, pois, ao mergulhar a narrativa na vida, ao narrar sua experiência de fato vivida, esse narrador “incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes”.

Quais os ganhos para o narrador, afinal? Ao narrar sua historia e conectá-la à do outro, seu ganho inicial se dá em poder contá-la como um fato dado e acontecido, e o segundo, em resolver uma questão utilitária de sua própria vida.

 

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