“Carta ao Pai”, de Franz Kafka, denota Complexo de Édipo não resolvido

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“Carta ao Pai”, de Franz Kafka, denota Complexo de Édipo não resolvido

Em Carta ao pai, podemos observar questões não resolvidas acerca de Franz Kafka em relação ao seu pai e como elas influenciaram sua obra

“O casamento é, por certo, a garantia da mais nítida autolibertação e independência. Eu teria uma família, o máximo que em minha opinião pode ser alcançado, ou seja, o máximo que também tu alcançaste; eu estaria à tua altura e todas as velhas e eternamente novas vergonhas e tiranias passariam a ser apenas história. Com certeza seria fabuloso, mas é justamente aí que está o problema. E, demais, tanto assim não se pode alcançar. É como se alguém estivesse aprisionado e tivesse não apenas a intenção de fugir, o que talvez fosse alcançável, mas também e na verdade ao mesmo tempo, a de transformar reformando, para uso próprio, a prisão num castelo de prazeres. Mas se ele foge, não pode fazer essa reforma, e se ele faz a reforma, não pode fugir. Se eu quiser me tornar independente, na relação especial de infelicidade em que me encontro contigo, preciso fazer alguma coisa que não tenha a menor ligação possível com a tua pessoa; o casamento é, sem dúvida, o que há de maior, e confere a autonomia mais honrosa, mas também está, ao mesmo tempo, na mais estreita relação contigo. Querer escapar disso tem, portanto, algo de loucura, e cada tentativa é quase punida com ela.”

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O trecho que acaba de ler é de Franz Kafka, em seu livro Carta ao Pai, edição da L&PM Pocket. Podemos identificar nele fortes elementos freudianos, que constituem a essência da obra inteira. O autor tcheco deixa bem claro que toda sua literatura é inspirada em sua relação com o pai, o comerciante judeu Hermann Kafka. “Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito” – diz o autor de A Metamorfose, O Processo, O Veredicto, entre outros.

Há que se destacar que Kafka, além de ter fortes sentimentos em relação ao pai, era profundo conhecedor dos escritos de Freud. Sem esses dois fatores atenuantes, Carta ao Pai não seria uma relevante obra tão lúcida e racional, e sim provavelmente um conjunto de impropérios baratos. Acredito que todo filho tem alguma questão conflituosa com o pai. Ao ler o livro, podemos identificar, com maior ou menor intensidade, traços de nossa relação familiar.

O inseto em que o personagem de A Metamorfose se transforma expressa como o escritor se sentia oprimido em relação ao pai, que o efeito dessa opressão era o sentimento de inferioridade. O que se pode se entender também como uma metáfora para a autodefesa, sobrevivência, ainda que em posição de derrota, que o autor assume ao término da carta.

O que Freud diria?

Para Freud, podemos ver na religião reflexos do próprio homem, e puramente do homem, nada divino ou sobrenatural. Deus é uma invenção do adulto para substituir a figura paterna, desta vez mais poderosa, idealizada. Durante a primeira idade, a mãe cuida do bebê e oferece todo o amor, cuidado e proteção. Quando ele cresce, o pai rouba a atenção da mãe, e obviamente, começa a ser mais notado e a ter mais influência naquele pequeno ser. Então, a partir daí, a percepção do filho homem sobre o pai pode variar.

O pai pode ser visto em alguns momentos como um tirano e em outros como um herói, um exemplo a ser seguido ou copiado. A ilusão do homem chamada Deus, para Freud, seria o reflexo dessa contradição proveniente do desamparo paternal.

Ao mesmo tempo em que Kafka admira o pai, também o teme (nada diferente da relação do homem com Deus) e termina o texto afirmando, a seu modo, como vemos no trecho em questão, que vê como impossível se libertar da forte influência do pai sobre sua existência, e com isso ele aceita, com ela, todas as privações.

O que podemos concluir?

Em suma, só o fato de sentir que precisa fugir dos fantasmas do pai e enxergar uma linha imaginária que os une e que os separa, reafirma a suposta competição entre pai e filho e a superioridade do primeiro sobre o segundo. O regresso de Kafka ao judaísmo, antes imposto, é mais um detalhe culminante do sentimento de culpa que se sente para com o pai, ou para com Deus.

Não é algo absurdo considerar, desta forma, que Franz Kafka, mesmo tendo plena ciência dele e tentado superá-lo, morreu com o Complexo de Édipo não resolvido.

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