Psicanálise e Literatura: a fala terapêutica no conto Angústia, de Anton Tchekhov

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Psicanálise e Literatura: a fala terapêutica no conto Angústia, de Anton Tchekhov

Em Angústia, Anton Tchecov analisa a psique da perda e da solidão de um homem após a perda de seu filho, bem como o isolamento social dele

Anton Tchecov, autor de Angústia e tantos outros contos
Anton Tchecov

Em Angústia, um cocheiro que não encontra com quem falar acerca da perda de seu filho: esse é o tema do conto de Anton Tchekhov.

A descrição de um ambiente escuro, triste, que inicia o texto de Tchekhov. De pronto, já nos envolve em uma atmosfera propícia ao sentimento que lhe serve de título, a angústia: é fim de tarde, grandes flocos de neve encobrem a paisagem e as pessoas, enquanto o protagonista – o cocheiro Yona Potapov –, encolhe-se ao máximo na boleia de sua carroça, imóvel. Assim, também o faz seu cavalo, o qual seguramente está imerso em profunda meditação, de acordo com o narrador. As duas personagens estão conectadas pela rotina do ofício.

O conto apreende uma só noite de trabalho do cocheiro. Noite parada, quase sem clientes, aumentando a sensação angustiante de espera. Apenas um militar e um grupo de rapazes procuram-no.

Ao começar a primeira viagem, vê-se a animosidade das pessoas da cidade, que o xingam exageradamente por esbarrar nelas, mostrando grande impaciência e irritabilidade e deixando o cocheiro ainda mais perdido, tonto. A cidade não o acolhe.

Depois da saída conturbada, Yona tenta finalmente falar algo com seu passageiro. Falha na primeira vez. Sua voz parece não existir: “Yona volta-se para o passageiro e move os lábios… Sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe saem da garganta.” Dominado pela angústia (do latim “angor” = estreitamento, apertamento), teve a fala cortada. Talvez pela sensação do nó na garganta que dificulta a expressão?

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Yona está tentando enfrentar, pela fala, o luto pela morte de seu filho, todavia é como se ele fosse invisível socialmente. Quando finalmente fala para o militar, em palavras simples e entrecortadas, sobre sua tragédia pessoal, não recebe um mínimo de atenção digna de se destinar a alguém de luto. Com descaso, o militar pergunta para que doença ele perdera o filho. Yona responde que não sabe, mas a resposta é ignorada, cortado com xingamentos do militar para Yona, que aparenta ter se perdido no caminho.

A próxima viagem é com três rapazes falantes e nada agradáveis. Um deles insulta Yona o tempo todo, apressando-o. Estranhamente, ao sair de seu ponto para levá-los e ter então contato com mais gente, mesmo essa gente sendo tão rude com ele, o cocheiro se sente menos solitário.

Em uma brecha que encontra, Yona olha para trás e fala para eles de seu filho falecido há pouco. Também sem sucesso. Um dos jovens, o corcunda, só lhe diz que “vamos todos morrer”. Yona segue a falar mais um pouco, mas não é ouvido. Eles chegam ao destino.

A angústia do protagonista é o anseio por ser escutado, por expressar em palavras uma tristeza e indignação – pela morte do filho e por não saber o motivo desta morte – que ele parece pouco compreender, mas que arduamente tenta colocar em palavras dirigidas a pessoas várias que vão cruzando seu caminho:

“Está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele… A angústia que amainara por algum tempo torna a aparecer, inflando-lhe o peito com redobrada força. Os olhos de Yona correm, inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de ambos os lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua angústia… Uma angústia imensa, que não conhece fronteiras. Dá a impressão de que, se o peito de Yona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia, daria para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com muita luz…”

Ainda com esperanças, antes de partir para casa nessa noite de pouco trabalho, Yona aborda um zelador perguntando as horas, mas ele logo o afugenta rudemente dali. Já em casa, tenta travar conversa com um outro jovem cocheiro. É igualmente ignorado.

As necessidades que estão no espírito de Yona nesse momento se tornam claras ao leitor pelo trecho que segue:

“Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com alguém sobre aquilo… É preciso falar com método, lentamente… É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu… É preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto.”

Yona então decide ir ver seu cavalo e segue para a cocheira. O animal lá se encontra mastigando feno (já que o dinheiro é pouco para a aveia). É sobre tal tema banal que o cocheiro inicia uma conversa. Recebendo do seu cavalo a atenção que não teve até então de nenhum ser humano, Yona sente-se agora acolhido e livre para falar sobre sua perda:

“Yona permanece algum tempo em silêncio e prossegue: — Assim é, irmão, minha eguinha… Não existe mais Kuzmá Iônitch… Foi-se para o outro mundo… Morreu assim, por nada… Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é teu filho… E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro mundo… Dá pena, não é verdade? O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo.”

O que a psicanálise diria sobre Angústia?

Freud, em O poeta e o fantasiar, identifica no processo da fantasia o alinhamento dos três tempos. De fato, no conto em análise, vemos (no momento presente) o desejo insatisfeito do protagonista Yona de falar sobre sua grande perda (ocorrida num passado próximo): a perda do filho.  Desejo esse que parece originar-se da solidão sentida por ele na sociedade, do isolamento que o angustia por não ter com quem falar. Ele segue toda a história tentando encontrar alguém que o escute e que seja capaz de mostrar alguma empatia por sua dor. Persiste a esperança dessa realização do desejo (situada no tempo futuro). Esse desejo se realiza ao final, com a solução do cavalo como “terapeuta” – personagem que estava desde o início ao seu lado e que representou solução inesperada e ao mesmo tempo tão evidente ao leitor ao longo do texto.

Publicado em 1886, antes mesmo da popularização do método freudiano de cura pela fala com o tratamento de Bertha Pappenheim (a Anna O.), este texto de Tchekhov nos apresenta uma personagem que está em busca de ser ouvida por alguém para solucionar ou ao menos acalmar sua angústia.

O terapeuta de Yona foi seu próprio cavalo. Aquele que o escutou e devolveu atenção. Não sendo humano, não poderia ter a mesmas reações e o mesmo retorno que se espera ao desabafar com uma pessoa, mas, no meio das relações humanas frias em que ele vivia, foi o que lhe foi possível obter.

O mundo que cerca Yona no conto, a despeito da distância no tempo, não parece se afastar tanto do nosso hoje. Vivendo em uma sociedade líquida, na qual o valor de um ser humano muitas vezes lhe é atribuído de acordo com a classe e status social, podemos encontrar (ou até mesmo ser) um “Yona” facilmente. É real hoje a possibilidade de que nos enrede o mesmo sentimento de solidão que tomou o protagonista, conduzindo-nos à angústia de não ter quem exerça a solidária e terapêutica função da escuta com empatia em nossa vida.

O mundo está ainda mais rápido. Carroças, cavalos viraram carros, aviões, Internet…  tudo o que poderia nos fazer mais e mais próximos, paradoxalmente, tem tornado a realidade e as relações algo fluido demais para que haja proximidade de fato.

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