Cinema: amizade masculina entre excessos e lacunas

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Cinema: amizade masculina entre excessos e lacunas
"RRR" ganha prêmio no Globo de Ouro — Foto: IMDB

Dois filmes sobre amizade masculina que, apesar das linguagens diferentes, unem-se ao descontruir os estereótipos do gênero.

“RRR” ganha prêmio no Globo de Ouro — Foto: IMDB

A amizade masculina como tema

Como exigido por minha pretensa cinefilia, um hábito que cultivo em época de premiações é eleger meus filmes favoritos da safra atual e, por vezes, estabelecer relações entre eles para tentar entender, de uma forma minimamente racional, o que está por trás dessa coisa tão subjetiva que é a nossa apreciação pela arte.

Coincidência ou não, os dois filmes que mais se destacaram este ano para mim têm entre si enorme potencial comparativo, já que, a meu ver, tratam do mesmo tema, embora adotem caminhos diametralmente opostos para desenvolvê-lo. O tema em questão é a amizade masculina. Os caminhos? De um lado, o início dela; de outro, o fim. Os filmes de que falo, como alguns já devem ter adivinhado, são: “RRR: Revolta, Rebelião, Revolução”, de S.S. Rajamouli, e “Os Banshees de Inisherin”, de Martin McDonagh.

Afetos efusivos e DR

O que primeiro me veio à mente ao analisar meu gosto por esses filmes que, na aparência – e na prática mesmo, não há como negar –, são tão diferentes entre si foi o fato de que, em ambos, há a presença de comportamentos pouco usuais em personagens do sexo masculino, como as demonstrações efusivas de amor entre os dois amigos vistas no épico indiano, e a necessidade de que a amizade retratada no drama (com pitadas de comédia) irlandês seja submetida a uma famigerada D.R.

Não obstante tais características reflitam uma tendência que vai ao encontro de contextos sociais externos, que cada vez mais visam mitigar os estereótipos de gênero, são poucas as vezes em que essas tentativas se mostram bem sucedidas no campo artístico, tal como ocorre aqui, em ambos os casos.

A emoção masculina, portanto, dá o tom às duas obras, e talvez essa abertura à vulnerabilidade de maneira tão nítida seja o que, a priori, me conquistou em cada filme. Mas as semelhanças não se encerram aí.

Direções opostas

Como pano de fundo às histórias, que se passam no mesmo período da década de 1920 (embora em pontos distintos do globo), há a guerra: em “RRR”, a luta indiana pela independência da Coroa Britânica; e em “Banshees”, a Guerra Civil Irlandesa que, coincidentemente ou não, envolve ao menos uma das mesmas partes daquele conflito.

O que nasce de tais contextos é único e aponta, como já anunciado, para direções opostas: em “Banshees”, a questão que fica ecoando no espectador durante todo o percurso narrativo dos dois protagonistas é “como uma amizade termina?”. Já no caso de “RRR”, a pergunta que serve como norte ao desenvolvimento do enredo é “como uma amizade começa?”. O que tentarei responder aqui, por sua vez, é: como cada um desses filmes procede para apresentar respostas a suas questões primordiais?

Intuitos narrativos diferentes

Banshees: Foto divulgação

Já que estamos no nível do “como”, que é onde ambas as películas se afastam de maneira mais marcante, quero tratar aqui mais dos seus aspectos formais do que dos semânticos, sendo que estes inevitavelmente serão tangenciados no decorrer da análise, muito por conta das escolhas de forma adotadas pelos respectivos realizadores, o que, por motivo óbvio, não foi acidental, considerando os intuitos narrativos de cada um deles.

Um filme exuberante

“RRR” é um filme gigante. E, apesar de ter gostado muito dele, não me refiro aqui à sua qualidade estética – nem às suas três horas de duração –, mas sim à sua natureza exuberante enquanto obra cinematográfica. Rajamouli não poupa em ação, efeitos especiais ou dramaticidade.

A ideia aqui é trazer a fantasia para dentro da sala de cinema – ou da casa do espectador, já que o filme foi lançado pela Netflix, tendo poucas exibições no circuito comercial –, pouco importando se as imagens na tela imprimem verossimilhança ou algo próximo do realismo a que estamos acostumados.

É tudo tão excessivo que o filme não consegue conter em si um único gênero: é, ao mesmo tempo, drama, comédia, ação, aventura, romance e, claro, para coroar tudo isso, musical. As canções, aliás, são um espetáculo à parte – destaque para Naatu Naatu, favorita a vencer o Oscar da categoria –, e servem especialmente para externalizar o amor entre dois homens recém conectados pelo destino, que nem mesmo o poder da guerra será capaz de destruir.

Um pouco clichê

Parece clichê? E é mesmo. Na película indiana, os sentimentos transbordam para fora da tela. Tudo precisa ser dito e mostrado, ao ponto de causar certa desconfiança sobre se aquilo que vemos deve ser encarado como ironia. Afinal, quão literal pode ser o enredo de dois homens cujo primeiro encontro se dá enquanto se penduram em cordas para salvar uma criança da explosão de um trem sob uma ponte e, depois de realizarem tal proeza, selam a amizade com um aperto de mão sobre os ares – que se repete embaixo d’água, por onde são capazes de caminhar alegremente na direção um do outro? Efeitos especiais à parte, Marvel e DC ainda têm muito o que aprender.

Mais uma vez ficamos na dúvida

Do meu ponto de vista, não há ironia alguma em “RRR”, até porque não há ali espaço para subtextos. Tudo é o que é: sem insinuações de cunho afetivo-sexual, os dois homens se amam como se amam dois grandes amigos, e os obstáculos que se lhes atravessam no decorrer da história servem quase que exclusivamente para reforçar a força desse amor quando confrontado com a realidade que insiste em enfraquecê-lo. A coragem exorbitante dos dois heróis talvez seja a única metáfora aqui: o verdadeiro ato de coragem é idealizar um filme “de macho” que é puro coração. Um filme que, sem temer a pieguice, aposta todas as suas fichas numa masculinidade capaz de endurecer e, verdadeiramente, não perder a ternura jamais. E não é que funciona?

Já no caso de “Banshees”, o que se vê é o outro lado do espectro: um filme intimista, que busca nas sutilezas encontrar as respostas para sua pergunta central. No decorrer da jornada dos ex-amigos Colm (Brendan Gleeson) e Pádraic (Colin Farrell), o que nos resta é questionar como e por que eles chegaram a esse ponto, já que pouco nos é mostrado e dito pelos personagens, especialmente no que se refere à época anterior ao ponto final da amizade.

Sentimentos reprimidos

McDonagh dá a partida com a decisão de um deles não ser mais amigo do outro e, aos poucos, apresenta pinceladas dos motivos que o levaram a tal decreto, de forma a que se abra ao espectador uma pluralidade de hipóteses: talvez seja o desejo de focar na produção de um legado artístico à humanidade, ou quem sabe a incapacidade de ter qualquer conversa intelectualmente relevante com o ingênuo personagem vivido por Farrell, ou, possivelmente, ainda, o simples desespero. Ademais do que está explícito nos diálogos e gestos, há também hipóteses submersas sobre sentimentos reprimidos.

Implicitudes

Tratando-se, portanto, de um filme de implicitudes, abre-se até mesmo espaço para a ironia, ausente em “RRR”. Por isso, é possível enxergar no seu cerne a melancolia e, ao mesmo tempo, o cômico, beirando o absurdo em alguns momentos.

Se na produção indiana tudo é jogado na cara do espectador, da forma mais explícita possível, aqui a interpretação alegórica é plenamente cabível, em especial se tomarmos como referência o pano de fundo da guerra em contraste com o embate particular entre os dois homens. Mais uma vez ficamos na dúvida: é um filme sobre a inutilidade da guerra? Ou sobre a inutilidade dos homens? Ou, ainda, sobre depressão? Ao subirem os créditos, uma gama de opções se abre diante de nossos olhos e, a meu ver, é aí que se esconde a riqueza dessa narrativa, que se amplifica mais e mais cada vez que paramos para pensar em seus significados ocultos.

Duas obras, dois gostos

Pensando bem, me admira um pouco esta minha escolha pelos dois filmes em questão como favoritos da temporada, já que um parece buscar espectadores menos afeitos a elipses e entrelinhas, enquanto o outro quer agradar justamente a quem gosta de preencher os espaços deixados em branco com reflexões dos mais variados matizes.

De qualquer forma, ambos cumprem o que prometem. Em “RRR”, tudo o que se vê na tela é o bastante, e nada que nossa singela imaginação pudesse inserir em eventuais lacunas estaria à altura do que de fato é exposto por essa obra de instinto totalizador. Em “Banshees”, a graça está em perquirir aquilo que está por trás das imagens, em rever o filme para encontrar detalhes que antes passaram despercebidos por nossos olhos, em imaginar. Talvez o cinema seja grande por isso: tem para todo gosto, mas um só gosto pode abranger tanta coisa…

Créditos HL

Esse texto é de Bibiana Lucas para nossa coluna Cinemateca HL. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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