Conto: Miss Hollyday

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rato 3.1
Ilustração de FP Rodrigues

 

Eu tinha dado uma risada angustiada e foi isso que me denunciou. Sempre havia sido conhecido pelo fato de não me importar com as coisas e então eu ri daquele jeito afetado e entredentes e vi um tanto cambaleante como uma criança cuja maldade restou descoberta, que ele havia me pegado.

– Sim, sei dela o pouco que jugo necessário.

– Você poderia nos explicar melhor?

– Não.

A primeira vez que ouvi o nome de Sylvia Hollyday encolhi os ombros em minha cadeira de colégio como um rato diante de um assombro enorme. Aquilo soava estrangeiro e nós éramos uma sociedade que fora ensinada a venerar tudo aquilo que não era nosso. Chamavam o nome dela antes do meu e a resposta dela à lista era sempre altiva, provavelmente do mesmo jeito de sua mãe – que já estava lhe ensinando a ser uma madame. No exato instante após o ecoar mítico de sua voz pela classe, chamavam-me e eu respondia com um chiado característico dos ratos. Ela sempre me olhava depois disso, toda contente, como se agradecesse a minha mediocridade (que não desvanecia o brilho de sua voz ao responder a chamada). Mas depois dessa época infantil, nunca mais havíamos nos visto. Até aquele dia…

Sempre havia apostado por uma filosofia de vida mansa, viveria muito feliz nos esgotos se não houvesse uma exigência muda de expormos nossa cara ao sol. Nunca entendi muito bem as regras da civilização, mas no fundo eu as detestava todas. À parte isso, vivia tomado por leituras infindas que ao cessar, davam espaço a outras e mais outras. Uma vez uma moça riu para mim num corredor de uma livraria, eu estava tomado de livros ao meu redor, que faziam pilhas no chão e de modo algum me acompanhariam até a minha casa pobre, e ela me espiava por cima de umas páginas amarelas de Cecília Meireles. Desviei o olhar. Não sem antes resmungar como um velho terrivelmente rabugento – o que por si só já teria alcançado o efeito desejado. É que eu sabia aonde sorrisinhos como aqueles me levariam, vi um advogado na rua uma vez dizer a expressão prum homem à sua imagem e semelhança: danação kafkaniana. Aquilo soava muito bonito e eu ficara horas inteiras pensando naquela expressão, poderia passar minha vida toda pensando na danação kafkaniana, enquanto dava uns passeios em algum parque.

Minha vida era toda assim, repleta de instantes-Deus de criação e filosofices até o momento em que eu resolvi, ainda não sei bem porque, ser escritor. Já beirava meus quarentas e tantos anos idos de inutilidade e vazio, rastejando sempre o mesmo caminho pelas ruas da casa dos meus velhos pais, quando pus aquilo na cabeça. E foi aí que o nome de Sylvia Hollyday voltou como um fantasma assombroso.

Tinha ido timidamente ao lançamento do livro de um antigo amigo de copos de cachaça, que era metido a escritor. Eu ali era o único outsider com minhas roupas surradas e meu costume de me portar com uma pobreza digna, de cabeça erguida. Ao redor de mim o som dos olhos contorcionistas dos que me observavam como um espécime de animal fora da jaula. As pessoas são malucas. Só porque eu não estava vestido como elas, só porque eu não tinha a mesma chave de carro engrossando o bolso da calça, elas já me imaginavam como um daqueles miseráveis marcianos pulverizadores de seres humanos, extraídos de um livro de Wells. Fiquei na minha, e na minha vez na fila (eu já me coçava pra sair dali) recebi um abraço enorme do amigo bêbado e um livro de graça (isso me valeu a noite), daí ele fez-me falar sobre uns rabiscos que eu fazia e que guardava no meu computador do século passado, momento no qual me apresentou uma mulher elegante que estava sentada com as pernas cruzadas folheando o livro dele. Sim, era Sylvia.

Hollyday atendia agora como agente literária. Não me pergunte o que é isso que acredito que nem Deus o saiba. Sei apenas que olhou para mim de esguelha e perguntou-me entredentes pelo meu enredo. Falei mais para meu amigo do que para ela. É que nunca me senti bem perto daquela mulher, desde quando ela era apenas uma menina cujo nome vinha antes do meu no colégio. Aliás, perto de pessoa nenhuma. As pessoas me dão vertigem com as suas máscaras de pessoas. As personas das pessoas me dão calafrios. Sempre preferi a companhia dos bichos, cães, gatos, patos, galinhas, tudo menos as pessoas. As únicas coisas que algumas pessoas fazem e prestam são os livros, absolutamente nada mais.

Contei para Hollyday e ela ficou paralisada. Contei do meu enredo que enfatizava a história de um menino que descobria sozinho um gosto por música erudita, sobretudo pelo balé e que, para viver esse sonho deixa tudo o que aprendeu a amar, torna-se odiado por todos, vítima de preconceitos mordazes, até apresentar como sempre sonhou O quebra-nozes diante de aplausos eternos como uma chuva a cair. Após a apresentação ele faz sexo com um cara e depois se mata.

O olhar que antes me relegava com algum enfado, de um instante para outro se tornou aflitivo, interessado, pesado em mim. Meu amigo fez uma cara de pândego e saiu, deixando-nos a sós. Encurtei a história para que por final pudesse sair daquele martírio, já que continuava a ouvir, indistintamente, o som dos olhos que piscavam e se reviravam ao redor de mim. Hollyday entendeu. Estendeu-me um cartão de visitas e pediu que encaminhasse a ela os meus papeis, ela faria deles um livro tal qual aquele que se lançava naquela noite.

Confesso que depois daquela noite ia por água abaixo, ao menos temporariamente, a minha imperturbabilidade epicurista. Eu que buscava apenas o enrijecimento e o arrepio da pele causados pelo frio do ar matutino numa caminhada às cinco em ponto, ou o prazer dos ouvidos diante de um canto de um pássaro qualquer, ao qual eu não me achava digno de dar nome, ou mesmo à visão das copas das árvores frondosas que se balançam ao vento numa praça qualquer, eu agora parecia estar muito preocupado com leitores, com seres de outro mundo que tinham a cara do homem médio e que leriam meu livro comparando-o com Faulkner, Joyce, Miller e outros. Aquilo me dava arrepios e alguma ânsia de vômito.

Sylvia Hollyday havia tirado a minha paz.

Organizei o original por completo e mandei para sua caixa de e-mail. Acho que digitei algo assim:

“Prezada Sylvia,

Segue o livro de que lhe falei. Chamam de romance. Digo, alguns a quem mostrei. Não creio nele como um romance. Não quero crer. Enfim, chame do que quiser, eu chamo de livro. É como uma força viva. Espero que dê certo”.

Nunca fui tão formal em vida. Nunca fui de catar empregos, portanto, não sabia usar o velho “atenciosamente” ao final. No meu e-mail apenas a confirmação de leitura por Sylvia. Esperei por longos meses até que desisti de esperar, mandei à puta que pariu os leitores universais, essa ficção imbecil, bem como as comparações com Faulkner, Joyce e Miller. Tomei algumas doses de cachaça e voltei ao meu estado natural de imperturbabilidade.

Um ano mais tarde estava eu sentado no chão de uma livraria, repleto de livros que lia até a hora que a loja fechasse, sem levar nenhum pra casa, naturalmente (ou compro livros, ou compro pão e isso não me parece uma dificuldade de ordem filosófica), quando me ergui aos poucos. Lentamente apoiei as mãos e os braços pelas prateleiras ao redor e, ereto, segui até o final do corredor onde reluzia um livro vasto com capa vermelho vinho, quase veludo. A capa era dura e com letras douradas nas quais resplandecia em toda a sua pujante arrogância o nome de Sylvia Hollyday. O título era O último arabesque. Na quarta capa reluziam as palavras: “Chamam de romance. Não creio nele como um romance. Não quero crer. Enfim, chame do que quiser, eu chamo de livro. É como uma força viva” e abaixo se dizia: palavras do editor da The New Yorker. Rasguei no canto de minha boca uma coisa indistinta a qual se poderia chamar sorriso. Fui ler a sinopse. Lá estava a minha obra, não ela toda, não com minhas palavras, mas aquilo era o meu enredo inteiro, refeito e publicado primeiro e com o nome de Sylvia. E eu, euzinho havia me tornado o editor da The New Yorker, sem saber.

Senti algo amargar dentro de mim. Sylvia Hollyday havia tirado a minha paz.

Meses depois fui procurado por um desses jornalistas de araque que vivem das fofocas dos escritores. Um bando de seres inúteis como ejaculações precoces. Disse-me com o gravador ligado que a Sylvia Hollyday havia dito num lançamento em São Paulo que havia topado a ideia de reescrever o livro, já que o autor que tinha bolado um enredo magnífico não soubera escrever direito e por isso havia quase implorado que ela o fizesse como bem quisesse, e que faria questão de ficar no anonimato depois. A editora havia topado com toda certeza e felicitado a grande autora e agente literária pelo fato de trazer um tema tão belo e impactante. Agora o reporterzinho perguntava com baba nos caninos amarelos se era eu, de fato, o escritor medíocre que havia tido a brilhante ideia do enredo. Disse a ele que não sabia como responder aquilo.

rato 2.1Mexendo os dedos no gravador ele perguntou se eu conhecia a Sylvia Hollyday. Eu tinha dado uma risada angustiada e foi isso que me denunciou. Sempre havia sido conhecido pelo fato de não me importar com as coisas e então eu ri daquele jeito afetado e entredentes e vi um tanto cambaleante como uma criança cuja maldade restou descoberta, que ele havia me pegado.

– Sim, sei dela o pouco que jugo necessário.

– Você poderia nos explicar melhor?

– Não.

 

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