Daniel Munduruku: o olhar indígena em 5 livros infantis e juvenis

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Nestes tempos conturbados e com propostas duvidosas para a educação como projeto de futuro, torna-se imperioso olharmos para aqueles que há muito tem algo a nos ensinar em filosofia, arte e educação

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Daniel Munduruku

Sempre estivemos de costas dadas a estes saberes, porque estivemos sob a “égide” de um projeto de Estado que não é novo. Nesse projeto, o extermínio da população indígena, seja por meio de políticas públicas ou da impunidade (cabe lembrar aqui o assassinato do Galdino da etnia pataxó que foi queimado vivo enquanto dormia em um abrigo de um ponto de ônibus em Brasília), estão presentes.

Como forma de reparação por mais de 500 anos de descaso ou reconciliação com nossa origem, em 2008 foi promulgada a lei nº 11.645, que versa o seguinte:

Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º  Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileira.”

Notemos como a notícia da edição de uma MP (medida provisória) pelo MEC coloca em risco o parágrafo segundo da legislação, que teima em não dar certo.

Nesse sentido, voltamos aqui nosso olhar para o ensino Fundamental I e II que, por ora, passam ao largo da reformulação curricular, oxalá!, e buscamos abrigo nos textos saborosos de Daniel Munduruku, que resgata em inúmeros de seus livros a história – memória – de seu povo, que não é outra senão a nossa.

Ele nos conta da importância da memória para os povos indígenas. Ele nos diz assim:

“As sociedades tradicionais são filhas da memória e a memória é a base do equilíbrio das tradições. A memória liga os fatos entre si e proporciona a compreensão do todo. Para compreender a sociedade tradicional indígena é preciso entender o papel da memória na organização da trama da vida”.

E mais:

“O presente, no entanto, está atrelado ao passado. Não a um passado físico, mas a um passado memorial, dos feitos dos criadores, dos heróis, e do início dos tempos.”

Desse testemunho, um projeto de educação é gerado, e como professor universitário graduado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia. Doutor em Educação pela USP e pós-doutorado em Literatura pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Daniel Munduruku nos ensina: “Percebi que na sociedade indígena educar é arrancar de dentro para fora, fazer brotar os sonhos e, às vezes, rir do mistério da vida”.

Trazemos para você 5 livros que nos contam um pouco desse mistério.

 

1. Meu vô Apolinário: um mergulho no rio de (minha) memória

Nesse mergulho, Daniel Munduruku toma fôlego para encontrar-se com os espíritos ancestrais, seus avós, em busca de orgulhar-se em ser um índio, numa época de sua vida (período escolar) em que ser indígena era motivo de chacota por parte de seus colegas da cidade de Belém do Pará. Era um traço de inferioridade, porque tal signo culturalmente fora construído expressando o atraso, a preguiça e o ser selvagem (o que ainda continua).

Sobre tais marcas, Daniel Munduruku, de forma muito sutil (dando voz a uma criança), situa-nos na questão do ser índio nos dias de hoje. Nessas memórias somos afastados da visão idílica construída sobre os povos originários que historicamente apenas colocou o índio como figura folclórica no nosso imaginário. E nesse afastamento deparamos com populações indígenas submetidas às mesmas opressões dos centros urbanos que outras minorias e que no universo infantil manifesta-se, dentre outros modos, como bullying.

Sofrendo as dores do preconceito já na infância, Daniel Munduruku reconcilia-se com sua identidade através das histórias de seu sábio avô, que traz consigo a fala de seus antepassados: “As estórias são fruto da inspiração de algum espírito que quer que a gente as ofereça às outras pessoas.”. Será dessa oferta, portanto, que o menino Daniel Munduruku saberá que índio é aquele que tem “uma história que não tem começo nem fim. É viver o presente como presente, uma dádiva de Deus”.

 

2) Crônicas de São Paulo: um olhar indígena

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Crônicas de São Paulo (Callis, 2009)

A cidade de São Paulo já foi pintada sobre muitos ângulos: como cidade que não para, nunca dorme; capital industrial e econômica do país; uma megalópole mundial, com muitas opções de cultura e lazer. São Paulo é a selva de pedras, toda cinza, que não soube preservar seu verde nem sua memória.

Será por meio de suas lembranças que Daniel Munduruku tingirá São Paulo com as impressões daquele que aqui chega pela primeira vez, porém marcado por uma cultura conciliada com a natureza.

Por meio de suas andanças pela capital paulistana, Daniel Munduruku resgatará a história da cidade e dos vários povos indígenas que habitaram essas terras e nomearam seus muitos cantos com as histórias de suas gentes.

“Tatuapé, Anhangabaú, Itaquera, Guaianases, Ibirapuera, Anhembi, Tucuruvi, Jabaquara, Tamanduateí, Pirituba, Mooca… Lugares transformados em caminhos, pontos de encontro, rotas de fuga. Nomes que indicam origem, eventos, emoções de tempos antigos. Nomes que habitam nossas memórias e às vezes caem em nossos lábios apenas por força do hábito. Palavras que carregam histórias.”

Ao fim desse passeio teremos um retrato mais humanizado de São Paulo.

 

3) As serpentes que roubaram a noite e outros mitos

“Não são histórias muito fáceis de compreender, não. E não são fáceis porque elas ocorreram num tempo em que o tempo ainda não existia, em que os animais governavam o mundo, em que o Espírito Criador andava junto com os homens no grande Jardim chamado Terra.”

São histórias contadas pelos avós da tribo Munduruku às crianças que deveriam ouvi-las com o coração, onde fica o “ouvido da Memória”, lugar onde o conhecimento cai, adormece, fica escondido, para surgir depois quando menos esperamos.

As crianças, para ouvi-las, teriam que encontrar-se com um dos avós da aldeia “na hora do sol dormir”, levando consigo uma pena de mutum que seria colocada numa cesta e a partir daí o velho apenas diria: “Foi assim que começa tudo…”.

E tudo será a origem do povo Munduruku; uma época em que quem mandava eram as mulheres; de como surgiram os cães; de quando a escuridão surgiu; e como não poderia deixar de ser numa história infantil, a história da morte da velha bruxa.

No fim do livro, o autor nos conta um pouco sobre a origem do seu povo, de como é a vida na aldeia e quais os jogos e brincadeiras que envolvem a todos, além das narrativas orais e por que não, as brigas.

 

4) O segredo da chuva

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O segredo da chuva (Ática, 2003)

A seca castiga o povoado. As plantas murcham, os animais sofrem e as crianças se entristecem; os rios vão afinando e as brincadeiras dos mais moços e mais velhos se escasseando com ele.

Contando dias e noites, os mais velhos esperam pela chuva que há tempos não aparece.

Nesse cenário, um jovem destemido carrega consigo as angústias de sua gente e aventura-se numa jornada em busca da causa da seca.

Ao longo da expedição, o sentido da luta é construído pela memória de seus antepassados, sempre emergindo das histórias de seu avô que, uma a uma, vão construindo a história da criação.

 

5) O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira

Nesses dois dedinhos de prosa, assim poderíamos chamar este livro, Daniel Munduruku denuncia o descaso com que nossa sociedade trata os povos originários. E o faz porque estamos de costas dadas à tradição, às nossas origens, a terra, à memória… a nós mesmos.

O discurso é firme e não encontra pieguismo, ainda que não passe ao largo do projeto de extermínio desses povos, que começou com a colonização quando do “reconhecimento da humanidade dos povos brasileiros chegou ao Brasil via bula papal”, até a extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) criado por Marechal Rondon, em 1910, que foi “recriado” posteriormente, já com a benção dos militares, como a FUNAI (Fundação Nacional de Apoio ao Índio), chegando aos dias de agora no confronto pela terra.

O discurso exalta o porquê da importância de “pensarmos no Brasil a partir das dificuldades pelas quais passam os povos indígenas? Por que é importante colocar os índios no centro de uma reflexão sobre a educação?”.

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