Devo abandonar tudo para escrever?

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Devo abandonar tudo para escrever?

O mundo por vezes nos exige um bom emprego, um bom lar, ter filhos e até animais, mas é possível escrever com tantos compromissos sociais?  

Em dezembro de 1942, Fernando Sabino tinha 19 anos e havia publicado um livro de contos. Curioso quanto a tudo que se dissesse sobre literatura, foi a uma conferência de outro escritor mineiro, bem mais velho e consagrado, para sair com uma decepção:  “Gostei muito dele [Abgar Renault] pessoalmente e o admiro muito. É pena um sujeito como ele, podendo ser um grande artista e se perdendo assim, não é? É o mal de todos os mineiros, mal de que pretendo de qualquer maneira fugir: se perder em outras atividades, se deixar vencer pela vida social, política, burguesa. Ser muito passivo, não ter coragem suficiente para passar o pé em tudo. Todos aqui são assim.”

As palavras estão direcionadas a Mário de Andrade, um dos maiores pilares do Modernismo brasileiro e do Movimento Antropofágico, trinta anos mais velho, que se tornou o principal conselheiro de Sabino após sua estreia com “Os grilos não cantam mais”. A troca de correspondências com impressões, dúvidas e problemas está no livro Cartas a um jovem escritor e suas respostas (Ed. Record, 2003), a melhor versão brasileira para o gênero que Cartas a um jovem poeta, de Rilke, consagrou. Na ocasião, o mineiro, prestes a se casar e a conseguir um cargo administrativo, temia que a vida o obrigasse pouco a pouco a deixar a literatura, a tal ponto que precisaria desde agora decidir: devo abandonar tudo para escrever?

“É o caminho de todos nós se aqui ficamos: casar, ter filhos, criar galinhas, um bom emprego, condição social – e literatura mesmo… horas vagas! É o cúmulo. E lá vou eu, Mário, lá vou eu. Estarei indo pelo mesmo caminho? Será que conseguirei reagir a tempo, ou me aguentar apesar de tudo? Estarei sujeito a ser artista nas horas vagas, por diletantismo? Isso para mim será pior do que a morte. Mas então é preciso mesmo mandar tudo à merda e tocar pra frente, romper com tudo e todos, abandonar tudo e todos, fugir daqui para poder se aguentar?”

 Por todo um mês Sabino aguardou a resposta de Mário de Andrade. Até o fim da vida, em entrevistas, o mineiro agradeceu esta carta vinda da casa número 546 da Rua Lopes Chaves, em São Paulo. Vai-se além da literatura, perpassa o que cada um pensa de si mexendo no mundo. Mário se preocupa que tantas dúvidas quanto ao próprio futuro possa ser um “excesso de consciência”, capaz de paralisar em vez de mover, e que toda a vontade em ser um artista puro se transforme em um isolamento.

“Eu creio que você vive justamente num elemento estagnado em que o seu dever é fazer. Você está arrepiado de perguntas inúteis […] Em 1843 os Álvares-de-Azevedo do tempo escreviam essas mesmas frases. E você sabe como elas saíram vívidas, verdadeiras de dentro de você. É você. Mas eu sei como elas saíram igualmente vívidas e sofridas dos Álvares-de-Azevedo maiores e menores de todos os tempos. Mas você me interromperá com todíssima razão: ‘Mas eu não tenho nada com Álvares de Azevedo e si coincido com ele, ele que se fornique! É o meu sofrimento, é o meu caso que eu tenho que resolver’. E você tem razão, Fernando. O que eu quis foi apenas dar mais humanidade ao seu egoísmo. Você pensa ‘nos outros’, hesita em ‘sacrificar os outros’, e esta aparência de humanidade é que me parece desumana. Apoucadamente humana, como se a sua humanidade se resumisse às quatro ou cinco pessoas que você toca com a mão!”

Para Mário, o escritor não é apenas aquele que executa bem o ofício de manejar palavras e de contar histórias com ritmo, mas,  sim, quem dá força e sustento às palavras e às histórias com um sentido comum de povo e de humanidade. Como trazer essa conexão naquilo que cria sem estar conectado, em vida e pensamento? Parecia esse o receio do modernista quanto à vontade de um jovem em abandonar casamento, emprego, faculdade, parentes para ser um escritor “de verdade”. Não que desaconselhasse o ato, apenas talvez dissesse que o melhor para um escritor é se humanizar, seguir o caminho que mais o humanizasse. Assim continua:

“Eu não sei, Fernando, eu não estou aconselhando nada, você tem de resolver sozinho. Mas haverá mesmo o que resolver? Tudo não estará indo certo? E neste caso o seu sofrimento e as suas dúvidas não derivam nem das circunstâncias da sua vida, nem da sua mocidade ávida do sofrer, mas das próprias realidades tão confusas da vida atual do homem? Não será talvez preferível e mais profundamente egoísta você não sacrificar nada, nem facilidades, nem amor, nem gozo, nem inimigos, nem incompreensões, mas viver tudo isso junto, em tudo procurando apurar o que é você e buscando se superar em você? Pra quê imaginar se do outro lado do túnel faz dia ou faz noite? Só tem um jeito de saber: é ir até lá”.

A questão, em cada um que a prossiga, como de Álvares de Azevedo para Fernando e de Fernando para tantos mais, será resolvida por cada tom que houver, nas particularidades de tempo e de pessoa, o que não pode ser diferente. Contudo, não brota da solidão, e ligar a própria angústia a tantas outras já é um caminho de saída, não apenas para si, mas para aqueles em comum. O que ultrapassa a época e o caso especial na resposta de Mário, para além do sentido coletivo, é seu convite antropofágico: por que abandonar se eu posso devorar?

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